Relatório analisa situação dos direitos humanos em 90 países. Diretor da ONG diz que Bolsonaro é exemplo de governante autoritário. Planalto foi procurado, mas não ainda não se manifestou.
(El País, 17/01/2018 – acesse no site de origem)
A violência policial, contra as mulheres e o recorde de homicídios foram alguns dos destaques negativos do Brasil na 29ª edição do relatório mundial da Human Rights Watch (HRW), ONG internacional de defesa dos direitos humanos. O documento, publicado nesta quinta-feira, consiste na revisão anual das práticas de direitos humanos em mais de 90 países e territórios, incluindo o Brasil.
O relatório inicia seu capítulo sobre o Brasil destacando a violência política e as ameaças contra jornalistas que marcaram a eleição de Jair Bolsonaro no ano passado. A HRW define o presidente eleito como alguém “que endossou a prática de tortura e outros abusos e fez declarações abertamente racistas, homofóbicas e misóginas”. Por isso, a chegada do capitão reformado ao poder é vista com preocupação pela ONG. “Estamos muito preocupados com a retórica utilizada por Bolsonaro durante a eleição”, afirmou, por telefone, José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da HRW. “É a primeira vez nesta região que se elege democraticamente um líder com discurso contra os direitos humanos.”
Embora o relatório apresente dados anteriores à era Bolsonaro, Vivanco alerta que as medidas já tomadas pelo novo presidente nestas primeiras semanas de governo não sinalizam para uma mudança na escalada de violência e nas violações registradas no país nos últimos anos. “Definitivamente a medida que facilita a posse de armas [assinada nesta terça-feira pelo presidente] não vai reduzir a violência”, diz Vivanco.
Para ele, um dos dados mais alarmantes trazidos pelo documento é o número de mortes provocadas por policiais no Rio de Janeiro. No ano passado, quando o Estado passou praticamente o ano inteiro sob intervenção federal, foram mortas pelas mãos de policiais 1.444 pessoas, entre janeiro e novembro, um recorde desde que se tem esse tipo de registro. “Em um Estado com uma população de 17 milhões de habitantes, as estatísticas oficiais mostram que a violência segue crescendo dramaticamente”, diz Vivanco. “Os números mostram a gravidade do tema da violência policial. E a resposta não é a militarização”. O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes são destacados no relatório entre as vítimas de homicídio no Rio de Janeiro no ano passado. Até o momento, não houve solução do caso.
A ONG também diz que a proposta de Bolsonaro na campanha de dar “carta branca” aos policiais para matar em serviço deve agravar a situação de segurança. De acordo com o relatório, as mortes provocadas por agentes podem provocar uma espiral: os homicídios tidos como execuções extrajudiciais colocam as comunidades contra a polícia, complicam as investigações e colocam os próprios policiais em risco, ao atrair possíveis represálias de grupos criminosos. Segundo a HRW, o ministro da Justiça, Sergio Moro, afirmou à ONG que o Governo Bolsonaro trabalha em um projeto de lei para “esclarecer” em quais condições um policial pode evocar legítima defesa se cometer um homicídio.
Fora do Rio de Janeiro, os índices também não são otimistas. Em 2017, a violência atingiu um novo recorde, com cerca de 64.000 homicídios no Brasil. Desses casos, poucos são investigados: o relatório destaca que o Ministério Público apresenta denúncia em apenas dois em cada dez homicídios. Entre policiais, 367 foram mortos durante serviço ou folga naquele ano. Ao mesmo tempo, em todo o país, policiais em serviço e fora de serviço mataram 5.144 pessoas, 20% a mais que em 2016.
A organização alerta para os homicídios cometidos pela polícia como forma de execuções extrajudiciais. Em São Paulo, o ouvidor da polícia examinou centenas de homicídios cometidos por integrantes da corporação em 2017, e concluiu que houve uso excessivo de força em três quartos dos casos, por vezes contra pessoas desarmadas. A HRW ainda denuncia que o Governo brasileiro não publicou um relatório anual sobre a letalidade policial e mortes de policiais, conforme orientou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em uma decisão de 2017.
Ainda sobre a violência policial, um ponto para o qual a ONG já havia chamado a atenção é sobre uma lei de 2017 que transferiu da Justiça comum para a Justiça militar o julgamento de membros das Forças Armadas acusados de cometerem execuções extrajudiciais contra civis. O mesmo ocorre para policiais militares acusados de tortura e outros crimes: são julgados pela justiça militar, embora os homicídios cometidos por eles ainda permaneçam sob a jurisdição civil. “Isso significa que as Forças Armadas e a Polícia Militar investigam seus próprios integrantes quando acusados de cometer crimes”, diz o documento, algo que vai na contramão do que as normas internacionais determinam.
Violência de gênero
O relatório também dá destaque ao não cumprimento da determinação do Supremo Tribunal Federal de conceder prisão domiciliar a mulheres grávidas, mães de crianças de até 12 anos ou de crianças ou adultos com deficiência, presas preventivamente por crimes não violentos, exceto em situações “excepcionalíssimas”. Embora o Ministério da Justiça tenha estimado que a decisão poderia ser aplicada a 10.693 mulheres, os juízes concederam a prisão domiciliar a apenas 426 detentas até 1º de maio, prazo estabelecido pelo STF para o cumprimento da decisão. O relatório denuncia que juízes “fizeram uso generalizado das situações ‘excepcionalíssimas’ para manter as mulheres na cadeia”.
A rede de proteção às mulheres também sofreu enfraquecimento. O orçamento da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres sofreu queda brusca, de 73 milhões de reais em 2014, para 47,3 milhões em 2017. Além de redução dos gastos da pasta, os equipamentos também encolheram. Entre 2016 e 2017 foram reduzidos o número de centros especializados de atendimento às mulheres – que prestam apoio jurídico e psicológico, por exemplo (de 256 para 241), de delegacias da mulher ou núcleos de atendimento da mulher em delegacias não especializadas (de 504 para 497), e de abrigos (de 97 para 74). “Em um país com mais de 200 milhões de habitantes, só existem 74 abrigos de proteção para mulheres e crianças”, diz José Miguel. “Isso reflete a falta de prioridade em relação à violência contra a mulher”. Nessa esteira, o governador de São Paulo João Doria (PSDB) vetou, nesta semana, um projeto de lei que previa o atendimento por 24 horas das 133 delegacias da mulher do Estado. Pelo Twitter, Doria, afirmou que o projeto apresentado era “inconstitucional”, e que iria “ajustar, aprovar e ampliar o projeto proposto”.
Marina Rossi