(Sul 21, 28/09/2014) Jandira Magdalena dos Santos Cruz e Elisângela Barbosa se tornaram nomes conhecidos no Brasil por motivos trágicos: as duas mulheres foram mortas no Rio de Janeiro após realizarem abortos ilegais mal-sucedidos. Seus casos chamaram atenção por terem acontecido na mesma semana, mas apesar de assustadores não são raros no país. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de um milhão de procedimentos dese tipo ocorrem por ano no país e, segundo o DataSUS, o aborto inseguro é a quinta causa de morte materna no Brasil, vitimando 200 mil mulheres por ano.
Uma em cada sete brasileiras entre 18 e 29 já abortou, segundo o IBGE. De acordo com o levantamento realizado em 2013 pela Universidade de Brasília (UnB) em parceria com o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, cerca de 80% delas têm religião, 64% são casadas e 81% já são mães. Em aproximadamente 35% dos casos, a mulher que aborta recebe entre dois e cinco salários mínimos e, em 24%, a faixa etária em que o procedimento é realizado é de 20 a 24 anos.
Neste domingo (28), atos acontecem em todo o país, pedindo a mudança na legislação, no Dia Latino-Americano e Caribenho de Descriminalização e Legalização do Aborto. Nesta quarta-feira (24), a Anistia Internacional pediu que o aborto não seja tratado como uma questão criminal e sim de saúde pública e direitos humanos no Brasil. A organização, através da campanha “Meu Corpo, Meus Direitos”, defende que o Estado está controlando ou criminalizando direitos humanos fundamentais ao interferir em escolhas relacionadas à reprodução e sexualidade.
Atualmente, pela legislação brasileira, o aborto é permitido nas seguintes situações: quando existe risco para a vida ou a saúde da mulher; quando a gravidez resulta de violência sexual; quando o feto é anencefálico. Este último só foi permitida a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, e é chamada de “antecipação do parto”, pois como o feto não possui vida encefálica, não existe a possibilidade de sobreviver fora do útero.
Nos casos não permitidos pela lei, o aborto é considerado crime contra a vida humana, com pena prevista de um a quatro anos de detenção. Podem ser responsabilizadas as mulheres que realizaram a prática, quando elas consentem, os médicos ou profissionais que realizam o procedimento e qualquer pessoa que tenha “colaborado” para o aborto.
Vitimando mulheres de baixa renda
Auxiliar mulheres que tenham realizado esse procedimento ou queiram realizá-lo não é tarefa simples, pois a maioria hesita em falar sobre o assunto, devido à criminalização. “Tem acontecido muitas denúncias por profissionais do campo da saúde. O aborto é realizado de forma clandestina, acontecem as complicações e daí as pessoas chegam nos serviços de saúde e esses profissionais, que têm dever ético, profissional de guardar o sigilo da paciente, acabam fazendo denúncias. Isso é muito complicado”, relata Fabiane Simioni, assessora jurídica da ONG Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos, que trabalha com mulheres em situação de vulnerabilidade social.
Fabiane lembra que a prática da interrupção da gravidez não é novidade, remontando à Grécia e a Roma Antiga, e que a sua proibição não impede as mulheres de realizarem. “Tornar o aborto uma prática criminosa só faz com que essas mulheres morram mais, em função ou do aborto em si ou das consequências. Legalizar vai fazer com que tenham mais acesso aos mecanismos de saúde para poderem tomar uma decisão com segurança, que não vá trazer consequência na sua saúde”, observou Fabiane.
Ela também chama atenção para o fato de as mulheres que morrem em decorrência de abortos serem as de classes econômicas mais baixas, pois as de maior poder aquisitivo podem pagar o suficiente para realizar o procedimento com mais segurança. Para Fabiane, a proibição passa pelo controle da sociedade sobre o corpo da mulher. “Tornar o aborto legal, descriminalizar, não quer dizer que todas as mulheres vão sair fazendo aborto. Esse é o grande pânico moral. Tem, por trás disso, uma questão de controle da sexualidade das mulheres”, argumenta, lembrando que métodos contraceptivos não são 100% eficazes e que os homens, muitas vezes, não se responsabilizam e abandonam as mulheres no momento da gravidez.
Às mulheres, resta tornarem-se mães solteiras com poucas condições de sustentarem seus filhos ou procurarem um procedimento de forma clandestina. “Os padrões culturais dizem que mulheres devem ser responsabilizadas pela gravidez e pelas suas práticas sexuais, o que para os homens é muito diferente. Aos meninos precocemente se incentiva que sejam conquistadores, que tenham várias garotas à disposição. Para as meninas, ensinamos a manterem a castidade”, aponta, acrescentando que essa é uma questão de gênero e de relações de poder.
Religião como justificativa para proibição
Muitos dos argumentos contrários à legalização do aborto são justificados pela religião, em geral o cristianismo, seguido pela maior parte da população brasileira. O grupo Católicas pelo Direito de Decidir, que existe desde 1993, no entanto, opõe-se à lógica da utilização das crenças religiosas como forma de proibição. “A gente propõe uma nova forma de pensar os direitos sexuais e reprodutivos em relação ao que a hierarquia da igreja católica propõe. Afirmamos o direito das mulheres decidirem, acreditamos que todas as mulheres têm capacidade ética e moral para decidir livremente sobre isso”, explica a coordenadora do grupo, Rosângela Talib.
Com embasamento teológico e a partir das crenças católicas, o grupo se afirma como dissidência em relação ao pensamento vigente na Igreja, especialmente sobre questões de sexualidade e reprodução. “A gente também se baseia no próprio magistério da Igreja, que diz que em questões morais em que se encontra numa encruzilhada, o fiel deve se basear na sua consciência esclarecida. Gostaríamos que a Igreja pensasse de forma diferenciada, avançasse nessa discussão”, afirma Rosângela.
Ela lembra que, apesar das oposições por parte da religião — que pensa o aborto como pecado — e da lei brasileira — que pensa o aborto como um crime–, as mulheres continuam abortando, o que significa que a proibição não tem “justificativa nenhuma”. “A ilegalidade do aborto tem consequências muito graves, às vezes fatais, como aconteceu com essas duas mulheres no Rio de Janeiro. Enquanto isso, no Uruguai está legalizado e faz um ano que não perderam nenhuma mulher por causa disso, porque são mortes completamente evitáveis”, compara.
Também mencionando o fato de contraceptivos não serem 100% efetivos, Rosângela lembra de outro fator que causa gravidezes indesejadas: a falta de informação e educação sobre sexo. “Dizer que as mulheres têm informação é uma inverdade, porque não existe educação sexual na maioria das escolas. Muitas meninas não têm ideia, não sabem como funciona a pílula. O que sai na televisão é ensinar a transar, mas porque engravida e como funciona o aparelho reprodutivo não se tem informação”, aponta.
Eleições
Apesar das duas candidatas mais bem colocadas nas pesquisas eleitorais serem mulheres, nenhuma das duas coloca o aborto em pauta no país. Candidatos com menor quantidades de voto, ligados a partidos de esquerda, mencionaram posição favorável à legalização: Luciana Genro (PSOL), Eduardo Jorge (PV), Mauro Iasi (PCB) e José Maria (PSTU). Em 2010, o tema foi assunto durante as eleições, mas neste ano parece ter sido novamente esquecido.
Rosângela lamenta que nenhuma das duas principais candidatas mencione o assunto, lembrando que elas “estão perdendo uma ótima oportunidade de colocar a discussão na sociedade”. “Para mim é aterrador ver que são duas mulheres que chegam no final da corrida presidencial e não colocarem em questão essa pauta das mulheres, que é tão cara para nós. O silêncio é absoluto e é uma pena. É um problema social gravíssimo, uma das mulheres que morreu agora deixou três filhos. É um absurdo e é uma coisa que nada justifica.”, afirma.
“Ninguém julga o homem”
Carla* é uma jovem universitária, de classe média-alta, que já realizou abortos duas vezes. Na primeira, há cerca de dois anos, ela estava em um país onde o procedimento é permitido, e na segunda estava no Brasil. A diferença entre as duas ocasiões foi notável: lá, ela chegou à clínica de ônibus, entrou pela porta da frente e o procedimento foi realizado na hora, após conversa com o médico, com anestesia local. O plano de saúde que Carla tinha na época no país cobria a interrupção da gravidez.
Ela passou por apenas um problema na ocasião: a falta de apoio do homem que a havia engravidado, que falou que não queria se envolver. Esse, aliás, foi o ponto em comum com a segunda vez em que precisou realizar o procedimento, já no Brasil, quando o namorado também não a apoiou. Carla pagou R$ 2 mil reais a uma clínica clandestina e encontrou uma pessoa em um estacionamento, que a levou até o local do procedimento. “Depois percebi que foi muito arriscado. Tinha um lugar de fachada e no fundo tinha um consultório médico, mas lá dentro me trataram bem”, contou.
O que a fez passar pela situação com tranquilidade foi o apoio das amigas, mesmo quando muitas pessoas não deixaram de se relacionar com o namorado que a “deixou na mão”. “Ninguém julga o homem, caiu tudo sobre mim”, lembrou. Comparando com a experiência do país onde morou, Carla não vê sentido na proibição, afirmando que lá estatísticas apontaram a diminuição das taxas de aborto após a legalização. “Parece que aqui a violência contra a mulher é tão banal que ninguém acha isso absurdo e opressor”, lamenta.
“Ajudar bebês a nascer me redime”
A situação de Larissa* é bastante diferente. Aos 16 anos, iniciando a vida sexual com um namorado, sem instruções sobre métodos contraceptivos, acabou engravidando. Sem informações sobre a possibilidade de interromper a gravidez, ficou desesperada ao pensar na possibilidade de precisar criar uma criança sendo tão jovem. “Eu não tinha muita noção, nunca falei sobre sexo com meus pais, e nem com ninguém além das amigas que também estavam iniciando a vida sexual, como eu, sem nenhuma informação”, lembra Larissa, atualmente com 32 anos.
Quando engravidou, ao contrário de Carla, não foi abandonada pelo namorado, que, embora também tivesse apenas 16 anos, permaneceu ao seu lado, também sem saber qual seria a melhor opção. “Ele me perguntou: ‘o que vamos fazer?’ e eu respondi indignada que não tinha o que fazer. Eu tinha ainda aquele pensamento de que aborto era errado”, contou.
Larissa começou a se desesperar conforme as semanas passavam, quando a mãe de um amigo do namorado que já havia abortado conversou com os dois, disse que ela não precisava ter o bebê se não quisesse. O namorado então conseguiu o dinheiro e até hoje ela não sabe como. Antes do procedimento, ela precisou passar por uma clínica de ecografia, o que lembra ter sido “um dos piores momentos”, porque pode ver o feto pela máquina. Pouco depois, foi com a ajuda da mesma mulher à clínica onde realizou o aborto.
Chegando na sala, cinco mulheres aguardavam e as duas menores de idade — ela e mais uma menina — foram as primeiras a realizar o procedimento. Após receber o anestésico, Larissa começou a sentir dores no útero, pois não tinha sido totalmente anestesiada. “Eu fiquei com muito medo, pensei em dizer que não queria mais. Mas não consegui falar nada, acho que porque a anestesia já estava começando a fazer efeito. E eu pensei também que se eu já estava sentindo dor é porque já tinham feito algo irreversível”, relata.
Ao acordar, viu ao seu lado a outra menina, que ainda dormia. “Comecei a chorar compulsivamente. A imagem da minha meia com sangue eu não esqueço ate hoje”, conta. Atualmente, 16 anos depois, Larissa é obstetra e realiza partos domiciliares, ajuda mulheres grávidas. Ela própria está tentando engravidar, mas por enquanto sem sucesso.
“De alguma forma, parece que ajudar bebês a nascer me redime. Porque hoje eu tenho um lado espiritual muito forte, que não é cristão, mas acredito que a gente passa pelo que tem que passar. Posso até pensar em quem era aquele ser crescendo dentro de mim, mas não me arrependo, porque as circunstâncias me levaram para aquele caminho”, desabafa.
*Os nomes das mulheres foram alterados para preservar sua identidade.
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