(Folha de S. Paulo, 23/08/2016) Dez meses se passaram desde que o Brasil decretou “Emergência em Saúde Pública de Situação Nacional” em razão da epidemia de microcefalia associada ao vírus da zika. De lá para cá, foram feitas várias promessas, como o acesso a repelentes e testes de zika para as grávidas no SUS, que ainda não saíram do papel.
Enquanto isso, já são 1.806 bebês com a síndrome congênita do zika, que causa graves alterações cerebrais, visuais e auditivos, danos que vão além da microcefalia. Foram confirmados 122 mortes fetais ou neonatais em razão da síndrome.
Não bastasse o zika, o vírus chikungunya também já mostrou que representa uma ameaça às gestantes, com a possibilidade de transmissão da infecção ao bebês na hora do parto. Entre os problemas causados à criança, estão hemorragias e paralisias cerebrais.
Só para refrescar a memória: em dezembro de 2015, o então ministro da Saúde, Marcelo Castro, anunciou que faria uma parceria com o Exército para a produção de repelentes a serem distribuídos às gestantes no SUS.
Logo depois, o Exército divulgou nota dizendo que não tinha infraestrutura para a fabricação do produto em larga escala. A produção é de uso exclusivo da tropa, segundo nota da instituição. Nem registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) o produto tem. A promessa não passou de bravata.
Em janeiro deste ano, Castro mudou o discurso e disse que somente as gestantes beneficiárias do Bolsa Família teriam direito ao repelente. Até agora, nada. Um impasse que tem atravancado as negociações é o preço do produto. Os fabricantes pedem isenção do PIS, Cofins e Imposto de Importação que recaem sobre os produtos químicos trazidos de fora do Brasil para fazer o repelente.
Também em dezembro o governo de Geraldo Alckmin (PSDB-SP) prometeu que as mulheres grávidas teriam direito ao teste para detecção do vírus da zika. Até agora, nada. Argumenta agora que os testes disponíveis não são 100% eficazes, dão muito falsos-positivos. Mas se isso é verdade, por que raios esses testes foram então aprovados pela Anvisa e estão aí no mercado?
Em junho último, foi a vez do atual ministro Ricardo Barros prometer, em visita à Bahia, a compra de testes sorológicos de zika para distribuição no SUS. As mulheres em idade fértil e gestantes teriam prioridade. Acontece que os testes ainda estão em desenvolvimento pela Fundação Baiana de Pesquisa Científica e Desenvolvimento Tecnológico, a BahiaFarma, sem prazo para chegar ao mercado. De novo, uma promessa vaga.
As gestantes com planos de saúde têm garantido esse direito ao teste, já que a ANS obrigou as operadoras de saúde a incluí-lo no rol de procedimentos. As grávidas pobres, que dependem do SUS, seguem desamparadas em seus direitos reprodutivos.
Não têm dinheiro para comprar repelentes, medida preventiva básica recomendada pelo próprio Ministério da Saúde, não têm acesso a métodos contraceptivos de longa duração e vivem em áreas de permanente risco para o zika e outras arboviroses, com saneamento básico precário ou inexistente.
O mesmo desamparo pode ser constatado em relação às mães nordestinas com bebês vítimas da síndrome congênita do zika. Muitas ainda não conseguem nem transporte para levar os filhos a um centro de reabilitação.
Mas isso não causa grande comoção na sociedade de uma forma geral. O cenário muda quando entramos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o acesso à interrupção da gravidez por conta do zika, por exemplo. Aí todo mundo gosta de dar pitaco, cair matando. Não seria ótimo que houvesse a mesma mobilização, o mesmo clamor, em torno da garantia ao acesso aos métodos preventivos?
É nessas mulheres que eu penso cada vez que escuto a conversa mole de políticos e gestores públicos, muitas vezes reproduzida de forma acrítica e descontextualizada pela mídia.
Quando vamos perceber que essa briga não é só delas? Que a questão da falta de saneamento básico, uma das principais razões que nos fizeram perder a luta contra o mosquito Aedes aegypti, é muita séria e afeta toda a nação? Que qualquer um de nós podemos ser vítimas dessas três arboviroses e de outras doenças, mesmo vivendo em áreas nobres?
Neste ano, duas pessoas conhecidas morreram de dengue. Tinham bons planos de saúde, passaram por pronto-socorros, mas não receberam diagnóstico e tratamento adequados no tempo certo. Conheço outras duas, também com planos de saúde, que há mais de um ano convivem com as dores e limitações do chikungunya.
Até quando vamos conviver com essa roleta-russa a cada verão?
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