Contornos de uma angústia: mentor da bióetica no Brasil fala sobre microcefalia e gravidez

19 de dezembro, 2015

(O Estado de S. Paulo, 19/12/2015) Pedir aos casais que não engravidem? “Pode gerar neurose coletiva.” Atacar só o mosquito? “Todos os elos estão vulneráveis.” Diagnosticar sem acompanhar? “Entre médico e paciente falta amizade com amor.” Humanizar a medicina? “Ou ela já é humanizada ou não é medicina.” As aspas sobre a microcefalia são de William Saad Hossne, o grande mentor da bioética no Brasil

Já não perguntam se a criança veio ao mundo de parto normal ou cesárea. Se pegou ou não o peito. Nem mesmo se é menino ou menina. A questão é: nasceu com 32? Desde que o Ministério da Saúde fechou em 32 centímetros para menos o perímetro encefálico da microcefalia, essa passou a ser a senha da angústia. Grávidas e mães com bebês de colo se solidarizam nas salas dos consultórios à espera de que a fita métrica da medicina as livre de um prognóstico difícil. Estão vulneráveis. Tanto quanto seus filhos. Tanto quanto os médicos. Tanto quanto o sistema.

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William Saad Hossne olha para esse cenário com uma sabedoria macro. Professor emérito da Faculdade de Medicina de Botucatu, da qual é um dos fundadores, e um dos papas da bioética, ele sabe que a vulnerabilidade não pode ser diagnosticada isoladamente. Ela faz parte de um tecido formado por vários elos, que interagem entre si e que, em última instância, podem atingir o elo da ponta, o ser humano. “É nele que, na maioria das vezes, a corda se rompe”, diz. No caso da microcefalia, o tecido se alargou de forma alarmante porque envolveu um personagem fora do script: o Aedes. O mosquito da dengue e da chikungunya também transmite o zika vírus, figura inocente para a procriação brasileira até que se ligasse febre e vermelhidão durante a gravidez a uma malformação que pode causar retardo físico e mental no descendente. Na terça-feira as notificações de casos suspeitos chegaram a 2.401, com 134 confirmações. Se são quatro registros por hora, imagine você a quanto está.

 

William Saad Hossne (Foto: Reprodução)

Na aritmética do dr. Saad (como é conhecido pelos colegas) ou do dr. William (como é normalmente tratado pelos alunos), o que conta é que essa geração já nasce fragilizada e se faz urgente um estudo sobre como acompanhá-la por todos os anos em que se fizer necessário. Quanto aos médicos – ele já teria formado mais de 10 mil na sua carreira, laureada de prêmios como o de Troféu Guerreiro da Educação Ruy Mesquita, de 2013 –, dr. William prega a filia. “Tem de existir entre o médico e o paciente um sentimento de amizade com amor, porque é numa hora como essa, em que a pessoa mais precisa, que às vezes a gente não dá a atenção devida.” Seria humanizar a medicina? “Não aceito a ideia de humanizar a medicina; para mim, ou ela é humanizada, ou não é medicina.”

A seguir uma conversa com este médico e professor de carteirinha que, aos 88 anos, depois de estar à frente da pós-graduação em Bioética na São Camilo por 11 deles, já programa novos caminhos por onde o humanismo pode se infiltrar.

A gravidez, por si só, já é uma circunstância vulnerável?

Todos os seres vivos estão sujeitos à vulnerabilidade. E todos têm em comum se defenderem por puro instinto de sobrevivência. Mas o ser humano vai mais longe: elabora regras, códigos, leis, normas de conduta e até se arma para se proteger inclusive de outro ser humano. Agora, em certas situações, essa vulnerabilidade é maior. A gravidez naturalmente desencadeia uma série de reações hormonais, é um momento em que pode haver fragilidade por doenças próprias do estado. Além do mais, toda mãe carrega a sensação de que responde por uma vida em gestação. Então isso também a torna vulnerável.

Quando há um agente externo afetando esse estado, como um mosquito, a situação muda? Os pais sentem mais ou menos culpa, por exemplo?

A reação habitual dos pais quando os filhos apresentam doenças, situações de vida negativas ou qualquer tipo de sofrimento, qual é? É a culpa. Agora, esse sentimento muitas vezes não tem objetividade nem bom senso. E, às vezes, para ter uma cooperação mais eficiente dos pais, é necessário trazê-los à razão. A tendência seria dizer “não protegi meu filho da picada do inseto”. A razão pergunta “mas por que os insetos estão se proliferando?” É importante destacar que essa mulher, esse casal, tem autonomia plena, mas está vulnerável. Falo isso para não ser reducionista, para que não achem que a vulnerabilidade é mera questão de diminuição de autonomia. É, sem dúvida, mas não basta. Quem lida com vulnerabilidade e ética tem o compromisso de aprofundar o estudo sobre as causas dessa vulnerabilidade e como cuidar dela. Não pode dizer apenas “esse indivíduo assinou um termo de consentimento para a pesquisa e, portanto, está protegido”. E se a proposta for desonesta? Ela se torna honesta porque é um termo de consentimento?

Dá para dizer que esses casais têm autonomia plena quando o ministério pede que deixem a gravidez para outro momento?

Não dá para firmar opinião contrária porque isso está sendo apresentado como recomendação. Mas é uma recomendação que pode criar problemas. Eu acho que ninguém, particularmente aqueles bem de saúde, tem o direito de levantar uma angústia e dar as costas. Até que ponto essa recomendação é útil, até onde é eficiente e até que ponto está sendo apresentada de maneira que atinja o objetivo? Algumas mulheres, por exemplo, estão tirando os óvulos, pagando uma fortuna para guardar os embriões e dizendo que vão utilizá-los para quando não forem ao Nordeste, de novo uma discriminação. Tudo isso porque estamos sendo atingidos por um fato novo que está despertando receios. Uma notícia como essa tem de ser trabalhada antes. Não estou dizendo que esteja certa ou errada, mas pode gerar neurose coletiva.

Muitos pacientes reclamam que os médicos não ajudam a diminuir suas neuroses…

Há coisas profundas que temos obrigação de fazer. E uma delas, apesar de parecer um pouco romântico, é aquilo que Potter (Van Renssealer Potter, criador do termo “bioética”) já defendia: tem de existir um sentimento que vai do médico para o paciente e do paciente para o médico. Esse sentimento é filia, é amizade com amor. Um precisa gostar do outro. E é exatamente na hora em que a pessoa mais precisa que às vezes a gente não dá a atenção devida. Não é só tratar com a última geração de antibióticos, mas saber como acolher o indivíduo.

O que estaria distanciando esse médico do paciente?

A medicina, a partir do século 19, se tornou muito mais uma ciência médica. Sim, o avanço da medicina em termos científicos foi extraordinário, abriu perspectivas e hoje ela trata gente que não tinha chance nenhuma de tratar antes. Isso foi importante, necessário, indispensável, mas não se pode esquecer que a gente não está tratando de uma variz ou de uma úlcera de estômago, a gente está tratando de um ser humano que tem variz, que tem estômago. Por isso, quando fui presidente da comissão de ensino médio do MEC, quando fizemos as diretrizes curriculares, já propunha que a medicina não ficasse classificada apenas como ciência biológica. As ciências em geral, sejam exatas, humanas ou biológicas, trazem conhecimento que se aplica ao ser humano. A medicina cuida do ser humano. Portanto, é a mais humana das humanas. Minha proposta é que seja situada no entroncamento das ciências biológicas com as humanas, assim como a arquitetura seria um entroncamento das exatas com as humanas.

Então não faz sentido dizer “vamos humanizar a medicina”?

Não. Entendo essa expressão como um grito de alerta, de socorro, algo como “nós somos seres humanos, não somos proveta nem tubo de ensaio”. Agimos, pensamos, sentimos, sofremos e precisamos desse cuidado integral. Mas não aceito a ideia de humanizar a medicina porque, pra mim, ou ela é humanizada ou não é medicina. Não posso reconhecer que exista uma medicina não humanizada e outra humanizada. O médico é um dos elos do sistema. O doente ou sujeito de pesquisa pode ter plena autonomia, mas o médico pode não ter autonomia para realizar a autonomia que gostaria de ter. E isso se reflete no paciente.

É possível aumentar essa lente e dizer que o sistema de saúde é vulnerável?

Pessoalmente, acho que é, mas não disponho de estudo para poder sustentar minha impressão. O que quero dizer é que tem de analisar a vulnerabilidade do sistema inteiro. Essa epidemia de microcefalia, por exemplo, é um alerta para fazer todos os estudos, e não apenas situações pontuais, sem aprofundar. Veja um exemplo patente: está começando a faltar repelente nas prateleiras. Se estão recomendando, já devia ter sido preparado o fornecimento adequado.

O que esperar de uma geração tão afetada como essa? É possível fazer uma associação com as vítimas da talidomida no final dos anos 1950?

A talidomida foi fruto de um projeto de pesquisa mal conduzido. Ela surgiu para tratar os vômitos da gravidez. Fez-se um trabalho experimental em animais antes de passar para o ser humano, e até aí está certo. Só que ele foi feito em ratos, e só em ratos. E o rato não é sensível à talidomida. Quando apareceram os primeiros casos de malformação em consequência do uso da talidomida por gestantes, o experimento se repetiu em coelhos, e eles mostraram alteração. Por isso, na resolução que a gente fez de ética em pesquisa com seres humanos, a 196, está dito: antes de experimentar uma medicação em humano, ela tem de ser testada em três espécies diferentes, sendo uma delas mamífero não roedor, exatamente para evitar o que aconteceu com a talidomida. Acho que, se podemos fazer alguma associação entre as consequências do uso inadequado da talidomida e a microcefalia, é que essa futura geração que vai ser atendida seja efetivamente uma minoria, uma minoria que tem de ser cuidada desde já, porque já nasce vulnerável. Tem de ser acolhida sem discriminação, sem estigmatização e com compromisso social de inclusão, e não de exclusão, pensando já lá na frente. O Ministério está dizendo que deseja fazer estimulação até os 3 anos de idade. Está na hora de pensar depois dos 3 anos.

Além da vulnerabilidade, o senhor também destaca a espiritualidade como referencial da bioética. Em que medida ela faz diferença numa epidemia como essa?

Faço uma distinção entre espiritualidade e religião. Não analiso a religiosidade a não ser como uma forma de espiritualidade. E acho que espiritualidade é, sim, um referencial para a bioética. Pode ajudar muito, pode não ajudar. Tem indivíduos que, dentro da espiritualidade, se sentem sempre vítimas, são masoquistas, acirram um sentimento de culpa. Falamos de culpa agora há pouco… A tendência é que ou a pessoa assuma a culpa ou ache que alguém é culpado. Isso tem que ser levado em conta, é importante, mas tem de saber trabalhar isso. Outra coisa: o médico tem a sua espiritualidade, mas não pode querer doutrinar o paciente. Tem que respeitar a alteridade, a espiritualidade do outro, não querer que seja igual a dele. E não dá para assumir graus nem fazer comparações. Lembro-me de um capelão que fazia uma conferência sobre doentes terminais. Alguém da plateia perguntou: “Mas, padre, o senhor não acha que quem é bastante religioso aceita muito melhor esse momento do que o outro?” E o padre falou: “Que nada, eu já vi até bispo dar mais trabalho que padre comum pra morrer”.

Que outros referenciais a bioética abraça?

Além da vulnerabilidade e da espiritualidade, eu destacaria a prudência, a equidade, a alteridade, a solidariedade e o altruísmo. Já publiquei sobre cada um deles. Agora estou propondo bioética e os cataclismos, as vítimas de tsunami, o migrante, o refugiado ambiental. Tem de pensar no indivíduo, mas tem de pensar nessas grandes coisas que estão sendo analisadas como desastre. Há problemas éticos profundos para serem trabalhados aí.

Mônica Manir

Acesse o PDF: Contornos de uma angústia (O Estado de S. Paulo, 19/12/2015)

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