Quem paga pela falha do Estado com o zika vírus, por Thomaz Gollop

13 de fevereiro, 2016

(Zero Hora, 13/02/2016) Estudos realizados por entidades médicas que apontam correlação entre o vírus e ocorrências de microcefalia em recém-nascidos põem em discussão a interrupção da gravidez em epidemias do gênero

Nosso ultrapassado Código Penal de 1940 não criminaliza o aborto em duas condições: quando a gravidez representa risco de vida ou decorre de violência contra a mulher. Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) patrocinou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF-54), que foi submetida ao Supremo Tribunal Federal (STF), cujo objetivo era obter permissão de interrupção de gestações de fetos anencéfalos. Um dos princípios desta ADPF era baseado no fato de que fetos anencéfalos são natimortos cerebrais e não possuem nenhuma perspectiva de sobrevida. Obrigar a mulher a manter essas gestações seria submetê-las à tortura, prática que fere a Constituição Federal do Brasil. Esta ADPF foi votada favoravelmente. A permissão concedida pelo STF significa que cada mulher pode escolher manter ou interromper a gravidez nesses casos.

Leia mais: 
Problemas da zika vão além da microcefalia, diz médica da PB (G1/Paraíba, 16/02/2016)
Teste de zika deverá ser obrigatório para gestantes no futuro (O Estado de S. Paulo, 15/02/2016)
O zika e o descaso na saúde pública, por Rodrigo Martins (Carta Capital, 15/02/2016)

Por que dizemos que o Código Penal brasileiro é ultrapassado? Porque, com exceção de pouquíssimos países desenvolvidos do mundo, a decisão de manter ou não uma gravidez é um direito da mulher. Não penalizam o aborto países culturalmente muito próximos do Brasil, como Portugal, Espanha, Itália e Uruguai. Mais além, a penalização do aborto é ineficaz!  Cálculos baseados em cuidadosas pesquisas realizadas pelo grupo do professor Mario Monteiro, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estimam em 700 mil os abortos inseguros por ano no Brasil. Felizmente, poucas vezes uma mulher é processada ou presa por ter decidido interromper uma gravidez. Se elas fossem presas, não haveria lugar suficiente para todas nas cadeias. Vou mais além: como homem digo com convicção há anos que se nós engravidássemos essa lei já teria sido modificada há muito tempo.

Vamos avançar: a professora Debora Diniz, da Universidade de Brasília, realizou uma Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) em 2010, cuja cobertura abrangeu mulheres entre 18 e 39 anos, e verificou que uma em cada cinco mulheres brasileiras até 40 anos realizou pelo menos um aborto inseguro. Entenda-se por aborto inseguro aquele realizado em péssimas condições, com risco à saúde e à vida da mulher. Mulheres ricas realizam aborto em ótimas condições e preservam sua vida e saúde.

Abortos inseguros atingem mulheres pobres, majoritariamente negras e de baixíssimo poder aquisitivo. É aqui que entramos na questão da provável Síndrome do Zika Congênita. Vamos discutir o tema Zika Congênita com responsabilidade e seriedade. Há médicos no momento que discutem se essa síndrome de fato existe e querem provas contundentes que apenas pesquisas prospectivas  produzirão. Mas algumas evidências muito importantes já possuímos. A doutora Adriana Melo, especialista em Medicina Fetal de Campina Grande (PB), examinou até outubro de 2015 mais de 60 bebês por ultrassonografia obstétrica, e ficou impressionada com as alterações graves do sistema nervoso central, dilatação dos ventrículos cerebrais e calcificações que permeavam o cérebro. Perguntada sobre a frequência destas anomalias, ela referiu que habitualmente via um a dois bebês com estas ocorrências por ano, mas que o volume de casos graves com estas complicações tinha sofrido um aumento exponencial. Ela foi mais longe: solicitou ao Ministério da Saúde que financiasse a vinda de duas pacientes para São Paulo a fim de serem examinadas por um especialista de notório saber que visitava a cidade vindo de Israel: Gustavo Malinger. O diagnóstico dele: a maior parte das estruturas do cérebro e dos olhos estão destruídos. Não há esperança para estes casos. Mas a médica fez um notável trabalho: colheu líquido amniótico das pacientes e solicitou uma pesquisa de Zika vírus que resultou positiva nos dois casos estudados em São Paulo. Surgiam as primeiras correlações entre a infecção intrauterina pelo Zika vírus e as anomalias fetais encontradas à ultrassonografia.

Publicação contundente foi veiculada no Jornal da Associação Médica Americana em 9 de fevereiro, pela equipe dos oftalmologistas Bruno de Freitas do Hospital Roberto Santos, em Salvador e Rubens Belfort, da Unifesp. Eles examinaram 31 crianças de 1 a 6 meses com microcefalia pelo critério de perímetro cefálico menor de 32 cm e um de seus genitores entre 1º e 21 de dezembro de 2015. Outras possíveis infecções foram excluídas por sorologia materna e todas as mães apresentaram exantema, febre, dores articulares, dor de cabeça e mal-estar durante a gravidez. Anormalidades oftalmológicas severas foram encontradas em 34,5% das crianças.

Se por um lado mais estudos precisam ser feitos, há uma indicação importante que a Síndrome do Zika Congênita existe.

A omissão do Estado com saneamento básico e controle do mosquito é a origem da epidemia do Zika, notadamente entre mulheres pobres. Reabilitação das crianças terá resultados muito limitados nos casos graves, segundo os especialistas. Perguntamos: é justo que as consequências da falha do Estado recaiam sobre os ombros das mulheres? A nosso modesto ver, às mulheres infectadas pelo Zika deverá ser dado o direito de escolher se querem ou não manter sua gravidez.

Thomaz Gollop

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