(O Globo, 26/08/2014) As principais democracias do mundo têm inscrito em suas Constituições os direitos fundamentais dos cidadãos. Direitos políticos, civis, econômicos, sociais e culturais figuram entre as condições básicas para a vida em sociedade tal como a conhecemos hoje. Mas nem sempre foi assim. Muitos dos direitos hoje considerados universais somente foram conquistados após muito esforço e muita luta. Como exemplo basta citar o voto feminino no Brasil, só garantido em lei no ano de 1934.
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Atualmente, podemos dizer que o Brasil elevou os direitos políticos, civis, econômicos e culturais a patamares inéditos, avançando rapidamente na realização progressiva deles. E assim surge o desafio de avançarmos nos chamados direitos de quarta geração, que englobam os direitos de mulheres, dos negros e da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), entre outros.
Nesse sentido, é fundamental refletirmos sobre alguns temas como, por exemplo, a “invisibilidade lésbica”. Ela reflete a repressão histórica imposta às mulheres, subjugadas em sua sexualidade e reduzidas ao papel de meras reprodutoras. As mulheres trabalhadoras são ainda mais suscetíveis à violência, sofrendo a opressão intensificada pela exploração cotidiana. Os chamados “estupros corretivos” baseiam-se na ideia de que a homossexualidade feminina pode ser “curada” e que seria uma ameaça constante na vida de milhares de lésbicas. Esse crime é uma das piores consequências da combinação do machismo com a lesbofobia.
Desde 2011, o Disque Direitos Humanos (Disque 100) recebeu cerca de seis mil denúncias de violação dos direitos da população LGBT — muitas delas de maus tratos, estupros e até homicídios. O último Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil, realizado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), revela que, dessas vítimas, 37,6% são lésbicas.
De 2011 para 2012, as denúncias aumentaram 166%. E os denunciantes mudaram. Em 2011, eram, em grande parte (41,9%), as próprias vítimas. No ano seguinte, 47,3% eram desconhecidos, sugerindo que a sociedade cada vez mais denuncia as violações de direitos humanos da população LGBT. A maioria das vítimas (60%) não era branca, ou seja, racismo e homofobia andam juntos, sugerindo uma triste realidade: o preconceito se manifesta de forma tão mais explícita quanto for elevada a vulnerabilidade percebida da vítima.
Naquele mesmo ano de 2011, o Estado brasileiro lançou um esforço para ampliar a resposta institucional à homofobia. O Supremo Tribunal Federal reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo — garantindo, dessa forma, não qualquer privilégio, mas apenas os mesmos direitos concedidos aos casais heterossexuais. Também o Poder Executivo, por meio da SDH/PR e do Ministério da Justiça, intensificou o diálogo com os estados para a criação de redes integradas de atenção a vítimas e o treinamento de policiais especializados no atendimento à população LGBT. No marco legislativo, temos diversos projetos em tramitação, que precisam ser apreciados o mais rapidamente possível pelos parlamentares.
É preciso dar um basta à violência homofóbica — entendida como a violência praticada contra qualquer pessoa pelo motivo de sua orientação sexual real ou percebida. É fundamental que o país seja chamado à reflexão e que todos se mobilizem. A democracia brasileira não pode mais conviver com a intolerância, o preconceito. Viveremos melhor sempre que promovermos uma cultura de paz, em que os cidadãos sejam respeitados independentemente de gênero, cor da pele, orientação sexual ou identidade de gênero.
Acesse o PDF: Um Brasil livre de preconceito, por Ideli Salvatti (O Globo, 26/08/2014)