Movimento #Elenao e a luta pela legalização do aborto no país vizinho provaram a capacidade das mulheres de mobilizar multidões pelas ruas e pelas redes
(El País Brasil, 02/11/2018 – acesse no site de origem)
Argentina e Brasil se olham pouco para contar o que se passa entre suas fronteiras. Quando muito, espiamos como está o futebol ou o câmbio do dólar do lado de lá ou de cá da fronteira. Essa miopia política está mudando e são as mulheres as protagonistas da história. São mulheres e meninas que se mobilizaram pelas redes sociais, inventaram um nome para o sentido da união, e se moveram a marchar. Ao contrário dos que analisam esses movimentos como fugazes, há algo de permanente para a consciência política – serão cidadãs com a memória de terem conhecido a multidão nas ruas. Isso altera a forma de fazer política nos dois países e faz do feminismo um aliado para os políticos progressistas e uma pedra no sapato para os conservadores.
Jamais se preveria que um tema polêmico como o aborto moveria um milhão de pessoas pelas ruas de Buenos Aires. No dia 8 de agosto deste ano, não era mais a questão humanitária da violência contra as mulheres, mas o direito a não ser presa por um aborto o que tocou o país. Eram meninas e famílias, música e arte, todos ao redor do Congresso Nacional onde seria votada a lei. Já se sabia de véspera que o feminismo perderia por uns poucos votos – foi uma quase vitória da lei, ou uma derrota como contam os opositores, mas a verdadeira vitória foi a das ruas. Se o aborto é uma realidade clandestina para as mulheres argentinas, passou a ser descriminalizado na forma de se conversar sobre o tema. Uma impressionante conquista para as “pibas” que descobrem as ruas e o feminismo ao mesmo tempo.
O Brasil não tem a mesma tradição de ocupar as ruas como a Argentina. Mas algo também mudou com o movimento “#EleNão” – foram milhares de pessoas nas ruas com uma única pauta: resistir que Bolsonaro fosse eleito. Não havia partido político ou frentes sindicais liderando o movimento, mas feministas. O movimento #EleNão esteve em todos os cantos do Brasil. Assim como na origem do “Nem uma a menos”, a criação é simultânea e com autoria fragmentada como quase tudo o que se passa no universo digital – um grupo de Facebook “Mulheres contra Bolsonaro” se metamorfoseia em uma chamada de ordem “#EleNão”, e a chamada convoca multidões às ruas. O feminismo da origem se transformou no povo pelas ruas.
Como na história da lei de aborto argentina, é possível contar de duas maneiras o resultado das eleições no Brasil. As mulheres quase reverteram a certeza de vitória de Bolsonaro, ou o capitão saiu vitorioso. Lá e cá algo mudou depois dessas mobilizações – são as mulheres nomeando-se feministas pelas ruas e pelas redes, provocando uma nova consciência sobre como se deve governar incluindo as mulheres e suas pautas na política. Nossas demandas não são simples, porém centrais à democracia. Queremos cuidar dos filhos, por isso creches; queremos decidir quando ter filhos, por isso saúde reprodutiva; queremos trabalhar e cuidar, por isso igualdade no mundo do trabalho.
É ainda difícil para as instáveis democracias da América Latina reconhecer as mulheres como sujeitos políticos e cidadãs. É como se nossa forma de falar, isso que se convoca como um novo feminismo, fosse sempre perturbador às negociações políticas dos homens. O próximo ano será de teste democrático para os dois países – eleições presidenciais na Argentina e a memória dos que votaram “não” à lei de aborto ainda está fresca; o primeiro ano de Bolsonaro como presidente, o líder que tem por estratégia perturbar a política com guerra moral contra as mulheres. Lá e cá, as mulheres estarão atentas: em 2018, testaram e provaram sua capacidade de mobilizar multidões pelas ruas e pelas redes. Se provocarem muito, nos moveremos lá e cá ao mesmo tempo.
Nota da Agência:
Debora Diniz, antropóloga brasileira, professora na UnB e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
Giselle Carino é argentina e atualmente diretora regional da IPPF International Planned Parenthood Federation.