(O Estado de S. Paulo, 23/02/2016) Mesmo que quem tenha feito merda seja o pai
Um portal curitibano publicou em sua página no Facebook a seguinte matéria:“Pai é preso ao deixar filho bebê sozinho no carro no estacionamento do aeroporto”, contando sobre um homem de 40 anos que foi detido após a polícia encontrar o filho dele, 11 meses, trancado dentro do carro, na área de desembarque do Aeroporto de Curitiba. O tal pai foi buscar parentes que chegavam à capital paranaense de avião e não viu mal em deixar o menino dormindo na cadeirinha, carro trancado, vidros fechados, sob um calor de quase trinta graus. A notícia era ruim, mas a blogueira Bic Muller, criadora do site “Morri de Sunga Branca”, percebeu que os comentários feitos pelos internautas eram ainda piores. Pegue o saquinho de enjoo e vamos juntos ler o que as pessoas tinham a dizer sobre o episódio (grifos do blog):
“Cadê a mãe que deixa a criança sair com o pai? Que sirva de lição, ainda bem que não aconteceu o pior”
Outro:
“Tomara que essa mãe nunca mais deixe a criança sozinha com esse sem noção”
Mais um, para mostrar que culpar a mãe quando quem faz merda é o pai é tendência:
“Os dois são irresponsáveis onde estava essa mãe?”
Os comentaristas deixam claro o pensamento do brasileiro médio: a mãe é responsável por tudo, mesmo que a criança tenha um pai. Se o pai não cuidou direito do filho? A culpa é da mãe que não sacou que o pai, aquele sem o qual o filho não existiria, é um inútil e sem-noção. Sacou a lógica?
Mas nem tudo está perdido. Houve vozes dissonantes que tentaram lembrar que, opa, ele é o pai.
Detalhe: A maioria absoluta de comentários questionando “onde estava essa mãe” foi feita por mulheres. Sim, elas mesmas. Até elas acreditam que a culpa é nossa. De arrepiar, não?
Claro que ninguém nasce achando que a culpa de tudo é da mulher. Esse comportamento é aprendido, e muito rapidamente. Quando uma adolescente aparece grávida nunca, n-u-n-c-a o menino que fez sexo com essa adolescente e também não se protegeu é questionado (vocês sabem que um filho é gerado depois do sexo entre uma mulher e um homem, não?). O senso comum, as redes sociais e a conversa de botequim são unânimes. A culpa é sempre da menina “que abriu as pernas”, que “não teve vergonha na cara” e por aí vai.
Sabe a igreja? Ela, pasme, ajuda a consolidar esse conceito de que o filho é apenas da mulher. Dia desses o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, colocou-se contra o aborto de bebês com microcefalia e disse que “as mães tem que encarar a microcefalia como missão”. As mães. Sobre os pais que abandonam as mulheres grávidas que foram contaminadas pelo zika vírus e descobrem essa condição neurológica em seus bebês? Nenhuma palavra.
Existem pais incríveis. Eu conheço vários. Mas a maioria deles acha que está fazendo um bom trabalho ajudando a mãe. Uma amiga que mora na Suíça comentou ontem sobre um comercial lindo que está passando na TV de lá, dos chocolates “Merci”. A palavra “merci”, em bom português, é “obrigado”.
“Aparecem cenas lindas de pessoas fazendo pequenos favores para outras”, conta. Uma delas mostra uma mulher sem guarda-chuva, sob um pé d´água. Outra mulher chega ao lado e a protege, dividindo sua sombrinha. Na cena seguinte um pai acalma o bebê de madrugada para a mãe poder dormir. O comercial, lembre-se, é sobre pequenos favores que podemos fazer ao próximo no nosso cotidiano. “Acabei de descobrir que um pai cuidando de seu filho é um favor que ele está fazendo para a mãe”, refletiu minha amiga. “E eu, tolinha, achando que ele não estava fazendo mais do que a obrigação”, concluiu.
Pai não ajuda. Pai cria junto. Coloquem isso na cabeça, mulheres e homens do meu Brasil. E também da Suiça.
Quer assistir à propaganda suiça onde o machismo é apresentado de forma fofa? Clique aqui.
Acesse o PDF: A culpa é da mãe!, por Rita Lisauskas (O Estado de S. Paulo, 23/02/2016)