Ah! Branco, dá um tempo! Carta aberta ao senhor Miguel Falabella

10 de setembro, 2014

(Blogueiras Negras, 10/09/2014) Você me pergunta se vou dizer que você é racista, me responda você!

Racismo não é polêmica, muito menos rancor ou falta de humor. Mais que ninguém, que
se pensa um defensor dos direitos de seus pares negros e portanto um aliado na luta
contra o racismo, deveria saber disso. Deveria saber também que cogitar tal hipótese e
ainda enumerar amigos negros para se defender, é viver num mundo tal de privilégio
onde se pode rebater a crítica dizendo que as vozes de mulheres negras são apenas
controvérsia, ou fazer um grande esforço para esconder o próprio racismo. Quem sabe os
dois.

Ah! Branco, dá um tempo! Você diz que “dói” ver luta de seus colegas negros,
menosprezados e invisibilizados por sua cor. No caso da mulher negra, tudo se agrava.
Você certamente tem ciência das recentes e tristes notícias sobre Neuza Borges, uma das
maiores atrizes que temos, mas que por seu lugar de mulher negra não encontra lugar na
televisão brasileira. Vive na carne a falta da carne em seu prato porque a próxima novela
não acontecerá tão cedo. Vai depender da “boa vontade” de alguém, não do seu talento.

Você me pergunta se o problema é o sexo ou “as nega”, querendo desacreditar nossas
críticas fundamentadas não em pré-julgamento, mas em fatos veiculados na mídia.
Notícias essas que agora dão conta que de repente a Globo, antes tão entusiasmada com
seu projeto, parece que já não está tão feliz assim. Você argumenta que se trata de uma
prosódia pura e simplesmente. Alega que o título da série veio de uma mulher negra.
Aliás, me pergunto se essa mesma mulher recebeu os devidos créditos e bufunfa por sua
colaboração já que foi descrita por você como nada mais que um estereótipo, alguém que
não merece nome, muito menos sobrenome.

Não tem problema branco, vou enegrecer tudo novamente.

As negas, volto a explicar, não é uma questão de prosódia.

Tal expressão transforma o corpo da mulher negra em peça, como eram chamados os
escravizados, a ser consumida por uma sociedade racista. Nos coloca no lugar de
mercadoria de segunda mão que não receberá o mesmo tratamento da carne branca e
delicada, aquela que não é “suas nêga”. A expressão é embuída não apenas de
pensamento escravocrata, mas também de machismo, cujas consequências sentimos na
pele por sermos mulheres negras. Trata-se portanto de uma dupla violência que
categoriza mulheres de acordo com sua cor de pele, qualidade que determinará qual o
valor e o lugar que têm.

Ainda sobre o nome da série, temo que muitas pessoas não saibam a diferença entre um
adjetivo racista e um adjetivo comum. Na Bahia, nego e nega tem conotações diferentes
das que tem em Recife, por exemplo. E dependendo do uso da frase, do tom com que se
fala, de quem recebe e de quem envia a mensagem, você ofende ou elogia. No entanto,
a construção “não sou tuas nega” não permite outro significado possível que não o
racismo num contexto hediondo de 350 anos de escravização. E se alguém perpetua
adjetivo racista, que nome isso deve ter? Ah! Branco, me diga você!

Sua idéia, aos olhos poucos atentos ou interessados apenas em gerar lucro, pode até
parecer de grande monta. Porém, está longe de gerar visibilidade ou dignidade. Aliás, exatamente o contrário. Como quase sempre acontece com literatura e dramaturgia feita
por brancos sobre negros, nos trata como simples objeto de estudo, algo que pode ser
manipulado e observado justamente como você faz, nos ensina a professora Lígia
Fonseca Ferreira. Nada mais é que negrismo e não negritude, como tem insistido o
escritor e jornalista Oswaldo de Camargo.

Sim, estou dizendo com todas as letras que quem deve escrever para o negro e pelo
negro deve ser ele mesmo, não uma pessoa branca. Chame isso de racismo reverso se
quiser. Para gente o nome disso é visibilidade, esta sim capaz de nos ter algum benefício,
com poderes para mudar o modo como seremos retratadas na próxima novela, na
próxima minissérie. Sem isso, nada mudará, seguiremos sendo uma sociedade
estruturalmente racista e machista onde a mulher negra nada mais é que um estereótipo
para racista se divertir ou entreter.

Uma sociedade em que nós, mulheres negras, não somos protagonistas nem mesmo num seriado a quem damos o nome. Sim, as notícias têm mudado, mas as primeiras davam conta de uma branca como a atriz principal. Ela que, atrás de um balcão de bar, vai nos observar como animais num zoológico, ela quem fala em nosso lugar. Nossa história, sofrimento e capacidade de discursar sobre nós mesmas são meros detalhes. A narradora da trama, nesse caso narrador, é alguém isento desse mesmo sofrimento. Não é bobagem, nem caretice, nem ditadura do politicamente correto como alguns vão afirmar. É critica e zelo por nossa memória e existência.

Você argumenta que “um programa que refletisse um pouco a dura vida daquelas
pessoas, além de empregar e trazer para o protagonismo mais atores negros” seria
desejável. E na verdade seria mesmo. Desde que escrito, produzido e protagonizado por
negros. Não por alguém que nem se deu ao trabalho de creditar a mulher negra que deu
o título à série. Esse detalhe é causa e ao mesmo tempo consequência de todos os
outros: a fetichização de nossa sexualidade e corpos, a ênfase nos estereótipos, a
violência simbólica que a série representa.

Como pretender que nos desumanizar é visibilidade? Desde quando nos tratar como a
carne mais barata do mercado como canta Elza, a Soares, é ser aliado? Ah! Branco, dá um
tempo! Suas palavras apenas enfatizaram suas intenções, a cada parágrafo tivemos a
certeza de que nossas críticas são fundamentais e muito bem fundamentadas, por isso
incomodam tanto. Seguiremos denunciando o racismo e o machismo daqueles que se
fiam no privilégio para destilar veneno e cometer tais violências contra a mulher negra.

Isso não é sobre sexo. É sobre denunciar um sistema perverso que exclui as mulheres
negras de todas as esferas e nos torna menos que humanas. Sistema esse que também
incide sobre o homem negro, alvo primeiro e preferencial da violência policial e da
hipersexualização do seu corpo: o “homem do pau grande” é resultado da brutal
animalização do corpo negro, sempre pronto pro sexo. Onde está a crítica desse sistema
na televisão brasileira? De certo não está em seu seriado, muito menos em sua fala.

Repudiamos suas palavras porque fomos estupradas nas senzalas e continuamos a ser na
dramaturgia feita por brancos sobre nós através de imagens estereotipadas em seriados,
novelas e minisséries. Esse é um dos mecanismos que a aliança entre o racismo usa para
se perpetuar: hipersexualizando a mulher negra que se torna desprezível para outros
papéis sociais. Você fala da mulata quente, gostosa, fogosa. Somos muito mais que isso.
Precisamos ser mostradas como as mulheres do dia-a-dia, que trabalham, dançam, fazem
festa e querem sexo sim, mas que não são apenas isso.

Não estamos aqui menosprezando nem dizendo que não somos camareiras, domésticas,
cabeleireiras: também somos trabalhadoras domésticas, cuidadoras. Mas sobretudo, com
as nossas conquistas e a nossa luta, galgamos lugares, posições: somos diretoras,
bailarinas, advogadas, publicitárias, escritoras, professoras e médicas. Onde elas estão no
seu seriado? Será que elas não moram em Cordovil? Será que elas não estão nas
periferias? Duvido muito. NÃO aceitaremos mais ser caricaturas! Por isso a critica vai além
do nome da série, o que por si só é deveras problemático.

Ah! Branco, dá um tempo! Nem queremos crer que você está se comparando e
recorrendo a Spike Lee para credibilizar seu trabalho. Não, nos recusamos. E não é
somente porque Spike Lee é preto, é porque não vemos nada, absolutamente nada de
crítica racial em “Sexo e as Nega” como vemos em “Faça a coisa certa”. O gueto é
paisagem, mas também é a vida, é a teia, é o sangue do autor que não está só
observando e contando sua versão dos fatos: Spike Lee está no gueto, ele é o gueto. E não alguém que não é “as nega”, alguém que pretende que nosso único objetivo de vida
é ter um parceiro sexual.

E por favor, respeite nossa memória e retire suas palavras ao nos chamar de capitães do
mato. Não estamos perseguindo as atrizes negras desse seriado, muito menos as
mulheres reais que são representadas pelas suas personagens. Quem conhece um
pouquinho de história e dela faz um uso bem intencionado, sabe que existem outras
versões além daquela em que fomos escravizados sem lutar, viemos sem resistência num
navio negreiro. Não se faça de desentendido, quem criou capitães do mato não foram os
próprios negros.

Acusar alguém de “se tornar capitão do mato” é algo muito mais complexo do que
formular uma frase. É impossível que sejamos algozes de nós mesmos, isso é falácia.
Retire sua fala e reflita sobre o que significa nosso boicote e critica que têm como alvo um
modelo e um sistema historicamente racistas, em que nem o direito de falar, contar
nossas próprias histórias e tecer criticas nós temos. Repito: isso não é uma caçada ao povo
negro nem à mulher preta e pobre. É sobre o racismo enrustidamente manifesto, sem
nem se sentir ou admitir.

Manifestamos profunda oposição a esse mundo, de quem bate e finge entender a dor
daquele que apanha. Esse mundo onde racismo agrada, é piada pronta para gerar
audiência e naturalizar o racismo. Estamos fartas do seu discurso, de programas que usam
blackface, que transformam toda mulher negra em empregada doméstica ou mulata
globeleza. Nossos corpos não são espaço para seu deleite, divertimento, lucro ou
usufruto. Nós somos mulheres negras de pena e teclado, ciosas e autoras de nossos
próprios enredos e objetivos de vida.

Ah! Branco, dá um tempo! Quem nos silencia é racista sim.

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