Não foi apenas no teatro, nos mais de 30 espetáculos em que atuou, que a atriz e produtora Ruth Escobar, morta nesta quinta (5), aos 82, sentiu-se autorizada a se desdobrar em inúmeras personagens.
Longe das coxias, esta portuguesa nascida Maria Ruth dos Santos, em 31 de março de 1935, na cidade do Porto, foi deputada estadual em duas gestões, empresária, ativista política, líder feminista, autora de uma autobiografia lançada em 1987 e uma militante em tempo integral cuja disponibilidade para criar e defender projetos comunitários impressionava até os amigos mais próximos.
(Folha de S.Paulo, 05/10/2017 – acesse no site de origem)
Tamanho ecletismo em sua trajetória foi marcado ora pelo signo do sucesso, ora pelo da polêmica. E, em incontáveis vezes, simultaneamente pelos dois. Se fosse possível abrigar tantas vocações atrás de uma única denominação, não seria injusto dizer que Ruth Escobar foi, acima de tudo, uma personalidade.
Ruth Escobar chegou ao Brasil aos 15 anos, em 1951 –as décadas seguintes que viveria por aqui ajudaram a atenuar, sem jamais eliminar, seu acento lusitano. No fim dos anos 1950, já casada com o dramaturgo e filósofo Carlos Henrique Escobar, partiu para uma temporada de estudos na França.
Ao retornar, criou sua primeira companhia, o Novo Teatro, e convidou para suas primeiras produções o diretor italiano Alberto D’Aversa, que havia chegado a São Paulo em 1957 para dar aulas na Escola de Arte Dramática.
As primeiras peças que D’Aversa dirigiu para Ruth e sua trupe foram “Mãe Coragem e Seus Filhos”, de Bertolt Brecht, em 1960, que se revelou um fracasso de bilheteria tão grande a ponto de comprometer o salário da equipe, e “Males da Juventude”, de Ferdinand Bruckner, no ano seguinte.
RESISTÊNCIA
O passo determinante para a consolidação do nome de Ruth Escobar como atriz e produtora se deu em 1964, com a criação do teatro que leva seu nome, no bairro da Bela Vista, região central de São Paulo.
O Teatro Ruth Escobar, um endereço que entraria para a história recente do Brasil tanto pela ousadia e ineditismo das produções ali apresentadas quanto por sua inclinação para polo de resistência à ditadura militar, foi inaugurado com um texto de Bertolt Brecht, “A Ópera dos Três Vinténs”, dirigida por José Renato (1926-2011).
Em julho de 1968, durante uma das apresentações da peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, o teatro foi invadido por 20 integrantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), que destruíram o cenário da peça, danificaram equipamentos e espancaram os atores.
“Vivi muitos momentos importantes com a Ruth. O mais marcante na minha memória foi estarmos juntas, presas, no Segundo Exército em São Paulo, em 1968”, recordaria a atriz Marília Pêra (1943-2015), que foi agredida no camarim durante a invasão do teatro pelo CCC.
“Naquela noite na sede do Segundo Exército, éramos cinco os ‘marcados’: Ruth Escobar, Augusto Boal, Plínio Marcos, Renato Consorte e eu”, disse ainda a atriz.
“Boal e Plínio conseguiram escapar. Ruth e eu fomos presas. Passamos duas noites no mictório dos militares, deitadas em dois colchões no chão, falando e temendo tudo. Além de tudo o que vi dela ali, vi também que ela foi uma luz no teatro brasileiro, desde todos os espetáculos que fez acontecer, até suas festas inesquecíveis, e mais suas inacreditáveis interpretações como atriz. A vida de Ruth Escobar não cabe em dez livros. Louca e criativa.”
No fim da década de 1960, a atriz produziu –e protagonizou– alguns dos mais lendários espetáculos já encenados no País em qualquer época. Entre eles, “Cemitério de Automóveis”, de Fernando Arrabal, que estreou em setembro de 1968 em uma velha garagem na Rua 13 de Maio, e “O Balcão”, de Jean Genet, que entrou em cartaz em dezembro do ano seguinte. As duas peças, surpreendentes pelo arrojo e vigor da encenação, foram dirigidas pelo argentino Victor García (1934-1982), que Ruth havia convidado para trabalhar no Brasil em 1967.
A montagem brasileira de “O Balcão”, apontada pelo próprio Genet como a melhor que seu texto recebeu em qualquer outra parte do mundo, subverteu até mesmo a arquitetura do teatro, que teve parte da plateia e mezanino destruídos para a obtenção de um vão livre de 20 metros de altura. A peça conquistou os principais prêmios de teatro naquele ano e fez de Ruth Escobar a vencedora do Troféu Roquette Pinto na categoria personalidade do ano.
Ao longo dos anos 1970, Ruth Escobar colocou o Brasil no mapa da vanguarda teatral mundial com a criação do Festival Internacional de Teatro, que, ao longo de oito edições (a primeira se deu em 1974), permitiu ao público nacional tomar contato com a obra de encenadores do porte de Bob Wilson, Andrei Serban e Jerzy Grotowski.
Depois da terceira edição do festival, em 1981, candidatou-se a deputada estadual e foi eleita duas vezes (1983 e 1987). Acabou expulsa do seu partido, o PMDB, ao apoiar, em 1986, a candidatura do empresário Antonio Ermírio de Moraes ao governo do Estado pelo PTB.
A edição seguinte de seu festival ocorreria, de forma bem mais modesta, somente em 1994, sob o nome de Festival Internacional de Artes Cênicas, que seria produzido até 1999.
No início dos anos 2000, recebeu o diagnóstico de que tinha o mal de Alzheimer. Aos poucos a atriz, cinco casamentos e mãe de cinco filhos, começou a se distanciar dos palcos e da vida pública.
Ainda teve tempo de lançar, em maio de 2001, um dos seus espetáculos mais controversos, o musical “Os Lusíadas”, superprodução de R$ 2 milhões inspirada na obra do poeta português Luís de Camões.
Ruth brigou com o diretor e o figurinista, foi aos jornais criticar a encenação que antes endossara, tirou a peça de cartaz para, em outubro do mesmo ano, trazê-la novamente aos palcos, com nova direção e equipe técnica.
Em 2011, o nome de Ruth Escobar ressurgiu no noticiário por um motivo preocupante, não por conta de algum novo projeto – e sim porque seu monumental acervo, incluindo prédios e material artístico, deteriorava-se vítima de abandono.
A melhor tradução do empreendedorismo e das controvérsias de Ruth Escobar talvez seja expressa pela canção “Essa Vida é um Mafuá”, composta especialmente para ela pelo jornalista e ator Oswaldo Mendes. Ruth interpretou a canção, com um conhecimento de causa ímpar, no espetáculo “Revista do Henfil”, de 1978.
Aqui, os versos de “Essa Vida é um Mafuá”:
Ei cara, vale tudo aqui na casa
só não me faça trapaça…
De trapaceiro aqui dentro
sou a mais eficiente
e jogo duro somente
se o inimigo apelar
traiçoeiro.
Enquanto houver um só triste
eu pintarei os meus lábios
de cintilante carmim…
Enquanto houver um só triste
não fecho o meu mafuá.
Ei, cara
pra ser sincera, confesso
tenho a coragem do novo
e a safadeza do velho.
*
1935
Nasce em Porto, Portugal, Maria Ruth dos Santos no dia 31 de março
1951
Muda-se para o Brasil e, anos depois, casa-se filósofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar. Com ele, iria para a França, onde faria cursos de interpretação
Fim dos anos 1950
De volta ao Brasil, cria com o italiano Alberto D’Averda a companhia Novo Teatro e atua em montagens como “Mãe Coragem e Seus Filhos” (1960), de Brecht, e “Antígone América” (1962), texto de seu marido
1964
Investe no teatro popular, levando um ônibus-palco à periferia de São Paulo, e cria a sua própria casa, que leva seu nome, no bairro da Bela Vista (inaugurada com uma montagem de “A Ópera dos Três Vinténs”, de Brecht, dirigida por José Renato)
1968
Durante uma apresentação de “Roda Viva”, dirigida por Zé Celso, o teatro foi invadido por integrantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), que espancaram atores e depredaram o cenário
1969
É louvada pelo deslumbre de “O Balcão”, de Genet, com encenação de Victor Garcia. A montagem modificou até a arquitetura do teatro, que perdeu parte da plateia e do mezanino para a criação de um vão livre. Pela produção, Ruth recebe e o troféu Roquette Pinto de personalidade do ano
1974
Cria o Festival Internacional de Teatro, trazendo para São Paulo obras internacionais de renome (seriam ao todo oito edições). Foi dentro da mostra a primeira vinda do americano Bob Wilson ao Brasil, com “Time and Life of Joseph Stalin” (que a censura obrigou a mudar para “Time and Life of David Clark”)
1977
Volta à cena como Ilídia em “A Torre de Babel”, dirigida por Fernando Arrabal. Depois, em 1990, seria dirigida por Gabriel Vilela em “Relações Perigosas”, de Heiner Müller
Anos 1980
Afasta-se do teatro, é eleita duas vezes a deputada estadual e dedica-se a trabalhos comunitários
1987
Lança “Maria Ruth – Uma Autobiografia”, narrando sua trajetória
Início dos anos 2000
É diagnosticada com Alzheimer. Mas ainda lança, em 2001, o controverso “Os Lusíadas”, baseado em Camões —houve um racha na equipe, que foi toda modificada até a estreia
2011
Vem à tona polêmica sobre a conservação do acervo de Ruth, que estaria deteriorado
Sérgio Roveri é jornalista e dramaturgo.