Casamentos entre pessoas do mesmo sexo saltam 360% após eleição de Bolsonaro, diz IBGE

03 de dezembro, 2019

Alta se deu de outubro a dezembro de 2018; no ano, avanço foi de 62%, contra 10% no período anterior

(Folha de S.Paulo, 03/12/2019 – acesse no site e origem)

O publicitário Cristiano Bueno, 33, e o estudante de engenharia Gustavo Baldin, 31, se casariam em uma cerimônia ao ar livre, no dia do aniversário de sete anos de namoro, em setembro deste ano.

Começaram a se programar quase dois anos antes, mas o desenrolar das eleições de 2018 fez com que eles antecipassem o casamento no civil e se apressassem antes de o ano acabar.

Os dois estavam acompanhando as opiniões do então candidato Jair Bolsonaro sobre os direitos LGBTs no país. “Tivemos muito medo de ele interferir nos nossos direitos, nos casamentos igualitários”, contou Baldin.

Casaram-se em 28 de dezembro de 2018, em Belo Horizonte, e organizaram, em cima da hora, uma festinha, com ajuda de fornecedores mineiros que aderiram à “corrida” no fim do ano.

“Além de garantir uma série de questões mais para frente, é um recado político para a sociedade de que nossa família existe”, afirmou Bueno.

Outros dois casais gays formalizaram a união no mesmo dia, no mesmo cartório. A grande celebração de Bueno e Baldin foi mantida em setembro, com os pais deles entrando com as alianças e um discurso sobre o amor: “Tão jovens, destemidos, mostram que todo amor é bonito e que feio é não amar”, narrou a celebrante Flávia Ayer.

Destemidos, porém, talvez não seja a palavra mais precisa.

Ao longo de 2018, o número de casamentos homoafetivos se multiplicou no Brasil, e a tendência ganhou fôlego após a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do país, em outubro, indicam números revelados nesta quarta-feira (4) pelo IBGE. De 674 casamentos entre pessoas do mesmo sexo registrados no mês da eleição, os registros do tipo saltaram para 3.098 em dezembro, um aumento de 360%.

Somados, os 4.055 enlaces registrados em novembro e dezembro perfazem 69% do total registrado ao longo de todo o ano de 2017.

Muitos dos recém-casados citam a eleição de Bolsonaro como catalisador.

O atual presidente tem um histórico de declarações homofóbicas —como em 2013, quando após o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mandar os cartórios oficializarem casamentos de pessoas do mesmo sexo ele disse que  tais “decisões só vêm solapar a unidade familiar, os valores familiares”—, e temia-se que ele revertesse direitos civis garantidos pela Justiça.

Apesar das declarações, entretanto, isso não se concretizou neste primeiro ano de governo, quando a gestão se concentrou na pauta econômica.

Impulsionados pela multiplicação de casamentos em novembro e dezembro, os matrimônios homoafetivos chegaram ao total de 9.520 em 2018, um aumento de 61,7% com relação ao ano anterior, quando foram registrados 5.887. No período imediatamente anterior, de 2016 para 2017, o aumento havia sido de 10%.

“Houve um aumento importante de 2017 a 2018 no número de casamentos de pessoas do mesmo sexo”, disse Klivia Brayner de Oliveira, gerente da pesquisa do IBGE, que divulgou nesta quarta as Estatísticas do Registro Civil em 2018.

No Recife, o documentário “Antes que ele chegue”, que será lançado em março, retrata a corrida dos casais homoafetivos para registrar oficialmente suas uniões diante do resultado das urnas em 2018. As filmagens começaram em novembro.

Para a diretora Clara Angélica Barbosa, os homossexuais sempre tiveram as vidas ameaçadas, “mas com a chegada desse governo isso se potencializou de uma forma absurda”. Ela ouviu casais com filhos dizerem que não querem que o medo afete a vida deles, que não querem se esconder.

“Uma (das personagens do filme) esteve doente, e a família impediu que a mulher a visitasse, mesmo após anos de relacionamento. Agora elas casaram, e uma é responsável pela outra.”

Pesquisadores do IBGE dizem não poder confirmar a relação do salto nos casamentos homoafetivos com a eleição de Bolsonaro.  “Existem especulações que podemos fazer, mas os nossos dados são frios, temos só os números de que aumentou ou diminuiu”, disse Klivia.

O aumento desses matrimônios é uma tendência consolidada, mas lenta. De 2014 até 2017, por exemplo, o avanço foi de 21%, praticamente um terço do índice registrado agora. O tamanho do salto de outubro a dezembro é inédito.

A união civil entre pessoas do mesmo sexo foi declarada legal em maio de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) mudou o entendimento do Código Civil de que a família era formada por um homem e uma mulher. A partir daí, as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser permitidas.

No julgamento em questão, ficou decidido que o reconhecimento das uniões estáveis entre casais gays deveria seguir as mesmas regras e ter as mesmas consequências que aquelas entre casais heterossexuais. E como a decisão dizia que as normas deveriam ser as mesmas para o casamento, casais homoafetivos passaram a pedir a conversão da união estável, o que está previsto no Código Civil.

Porém, muitos encontraram resistência nos cartórios. Até maio de 2013, quando o Conselho Nacional de Justiça publicou uma resolução que permite aos cartórios registrarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo e os proíbe de se recusarem a fazê-lo.

Com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República, alguns casais gays decidiram antecipar o casamento por receio que o direito à união homoafetiva fosse revertido no país, por conta do histórico do político declarações consideradas ofensivas à população LGBT. Isso não ocorreu até o momento.

Elas se casaram mais do que eles em 2018 — foram registrados 5.562 matrimônios entre mulheres, sendo que 34% deles (1.906) ocorreram no mês de dezembro. O número é 40% superior aos 3.958 enlaces entre homens registrados no período, sendo 30% deles em dezembro.

A pesquisa foi feita com dados fornecidos por cartórios de registro civil, tabelionatos que realizam divórcios e as varas cíveis ou de família que informam divórcios.

O instituto explicou que, por enquanto, não tem orientação para mudar sua pesquisa e contabilizar as uniões estáveis do país.

“A pesquisa é de fatos vitais, relacionados ao começo e fim da vida e à mudança de estado civil. Quando você casa, muda seu estado civil. A união estável é uma situação conjugal, você está em união estável, mas seu estado civil não se multiplica. Se é solteiro, continua solteiro. Contamos os casamentos oficiais, que mudam o estado civil da pessoa”, disse Klivia.

No total, o Brasil registrou 1.053.467 casamentos em 2018, uma oscilação 1,6% em relação ao ano anterior.

“Com exceção das regiões Nordeste e Centro-Oeste, que assinalaram aumentos de 0,8% e 3,3%, respectivamente, todas as demais apresentaram queda no número de casamentos civis registrados em cartório. Não foi observado o mesmo comportamento nos casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo”, apontou o IBGE.

Já o número de divórcios concedidos em primeira instância ou por escrituras extrajudiciais cresceu 3,2%, de 373.216 em 2017 para 385.246 em 2018. “O casamento está caindo e o divórcio aumentando, de uma certa maneira, mas ainda temos uma relação de três casamentos para cada divórcio”, disse a gerente da pesquisa.

O tempo médio de casamento no Brasil também está caindo. Em 2008, os casais ficavam 17 anos juntos. Em 2018, esse número caiu para 14 anos.

MAIS SOBRE AS REGRAS DO CASAMENTO HOMOAFETIVO

Desde quando casais homoafetivos têm direito à união estável no Brasil?

Em maio de 2011, o STF mudou o entendimento do Código Civil de que a família era formada por um homem e uma mulher. A partir daí, as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser permitidas. No julgamento em questão, ficou decidido que o reconhecimento das uniões estáveis entre casais gays deveria seguir as mesmas regras e ter as mesmas consequências que aquelas entre casais heterossexuais.

E ao casamento?

Como a decisão dizia que as normas deveriam ser as mesmas, casais homoafetivos passaram a pedir a conversão da união estável em casamento, o que está previsto no Código Civil. Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça publicou uma resolução que permite aos cartórios registrarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo e os proíbe de se recusarem a fazê-lo.

Isso quer dizer que o casamento homoafetivo é permitido por lei?

Não, já que nenhuma lei foi aprovada nesse sentido. O que garante os casamentos e uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo é a jurisprudência.

Existe diferença jurídica entre casamentos homo e heteroafetivos? Não, os direitos e deveres são os mesmos.

O direito ao casamento homoafetivo pode ser revertido?

A jurisprudência que garante o direito de casais homossexuais se casarem só poderia ser revertida caso o Congresso aprovasse uma lei proibindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Segundo especialistas consultados, isso não poderia ser feito por decreto presidencial, mas o presidente pode encaminhar o projeto de lei ao Legislativo. De toda a forma, tal lei seria facilmente questionada na Justiça.

Quem já casou pode ter seu casamento anulado caso a lei mude?

Não, isso é considerado inegociável pelos especialistas ouvidos pela Folha.

Jair Bolsonaro ameaçou acabar com o casamento homoafetivo?

Diretamente, não, nem fez disso uma proposta concreta durante sua campanha à Presidência. Contudo, o presidente eleito já deu declarações consideradas ofensivas ao público LGBT e disse, em 2013, que “está bem claro na Constituição: a união familiar é [entre] um homem e uma mulher. Essas decisões só vêm solapar a unidade familiar, os valores familiares”.

Existem propostas para que o casamento homoafetivo vire lei?

Sim. O PL (projeto de lei) nº 612/2011, de autoria da senadora Marta Suplicy (sem partido), muda o Código Civil para retirar menções de gênero em relação ao casamento e à união estável. A proposta foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, mas um recurso do senador Magno Malta (PR-ES), da bancada evangélica, solicitou que a matéria fosse votada em plenário. O projeto foi colocado na pauta para votação em dezembro do ano passado, mas não houve quórum. Para que vire lei, o PL precisa ser aprovado nas duas Casas do Legislativo e passar por sanção presidencial.

Por Diego Garcia

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