(Intervozes, 22/08/2016) O reforço de estereótipos que silencia a diversidade de mulheres e desrespeita sua atuação como atletas foi analisado pela jornalista Débora Prado, do Instituto Patrícia Galvão, na entrevista a seguir.
Uma pesquisa recente demonstrou que as atletas em geral têm menos aparição na mídia do que os atletas e, quando são retratadas, ainda são comuns os estereótipos e violências. Como você avalia a cobertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016 a partir desta perspectiva?
As desigualdades e as relações de poder construídas em torno dos gêneros – incluindo aí os esportes e eventos esportivos – leva à negação de direitos em diferentes níveis. Por isso, é fundamental desnaturalizar esses papéis discriminatórios. Mas, infelizmente, a invisibilidade da construção social em torno dos gêneros ainda é bastante naturalizada, apesar de alimentar discriminações, limitar oportunidades e até estimular a violência contra as mulheres. Por outro lado, diante deste cenário de desigualdades, existem cada vez mais vozes fazendo denúncias, desconstruindo os papéis e evidenciando os limites que eles impõem às mulheres em sua diversidade.
No esporte, não é diferente e tampouco foi durante as Olimpíadas. Por um lado, uma parcela da sociedade vibrava com o feito das atletas, e a própria realidade desconstruía papeis de gênero tradicionais, já que a diversidade entre as esportistas era inegável. Por outro, a cobertura ficou marcada pela reprodução de estereótipos sexistas antes e durante os jogos. Na mídia empresarial, observamos a reprodução de velhos clichês sexistas, como destacar uma atleta pela sua aparência física e não pelo desempenho esportivo ou apresentá-la como a namorada ou esposa de alguém – ou seja, a redução da mulher a um acessório ou objeto de prazer para um homem, noção que além de sexista é altamente ultrapassada pelo reducionismo que representa. Na internet, vimos casos mais graves, como a violência de gênero praticada na internet contra a nadadora Joana Maranhão ou os crimes de racismo contra a judoca Rafaela Silva, que foram cometidos nas Olimpíadas passadas.
Mas é importante observar não só os preconceitos reproduzidos, como também a desigualdade no tratamento que o silêncio representa, ou seja, observar o que a imprensa deixou de fazer. As mídias, de um modo geral, perderam a oportunidade de debater a desigualdade de gênero no Brasil e nos esportes – este tema era um fator de interesse público considerando que as mulheres são metade da população e que as atletas exerceram um papel fundamental no desempenho do país nos Jogos Olímpicos.
Seria uma chance de pautar que o esporte, como outras esferas da vida social, pode ser tanto esfera reprodutora de discriminação, como ferramenta de reflexão, discussão e empoderamento de meninas e mulheres. Acabaram noticiando o percurso individual das atletas medalhistas, mas o problema estrutural não apareceu, salvo algumas exceções, especialmente no jornalismo online e de veículos alternativos. Ou seja, a mídia empresarial tem a responsabilidade de não ocultar que as atletas enfrentam vários obstáculos para chegar a uma Olimpíada – desde desestímulo para prática de alguns esportes por meninas nas escolas e até pela família, passando pela falta de investimento nas categorias de base feminina e também na profissionalização. E vale lembrar que a diferença na visibilidade em relação às categorias masculinas reverbera nos patrocínios.
Tudo isso fica muito invisibilizado e, quando estas atletas superam inúmeras barreiras e chegam a uma Olimpíada, num momento de visibilidade, ainda são submetidas a desqualificação sexista e até a violências, como aconteceu com Joana Maranhão.
Os direitos de transmissão dos megaeventos esportivos são negociados por valores altíssimos e ficam restritos aos grandes monopólios de mídia. Como isso se relaciona com o enquadramento da cobertura?
Os monopólios midiáticos são um grande problema para a efetivação democrática no Brasil, pois vêm há anos impedindo que haja diversidade de perspectivas e vozes – e sabemos que as perspectivas feministas, anti-racistas, LGBT, indígena, daqueles que foram impactados negativamente pelos megaeventos, entre tantas outras, é brutalmente silenciada. Olhando a diversidade de realidades em que vivem mulheres e homens no Brasil, fica muito evidente esta lacuna de representatividade nas empresas de mídia onde, de um modo geral, predomina a lógica comercial. A internet altera um pouco este cenário. Há como pressionar os veículos por aquilo que é ocultado, mas esse é um fenômeno recente que ainda precisa ser melhor entendido.
De que forma a cobertura poderia contribuir para visibilizar e empoderar as atletas?
A cobertura poderia, por exemplo, discutir os papéis desiguais de gênero, mostrar que eles são construções culturais que podem – e devem – ser modificadas quando limitam o pleno potencial de desenvolvimento de diversos grupos na sociedade e, inclusive, estão nas raízes de violências. O esporte seria um espaço incrível para debater estas desnaturalizações tão necessárias. Poderia também mostrar a diversidade de mulheres que existe, que não há um ideal único de feminilidade. Poderia ainda debater a falta de investimento na formação das atletas, colocar suas vozes em primeiro plano. Mostrar seu protagonismo e empoderamento, que certamente servirão de inspiração para muitas outras meninas e mulheres. E pode cobrar as instituições quando elas promovem o racismo e o sexismo institucional. Por exemplo, depois de toda repercussão positiva do futebol feminino, que não conseguiu medalha, mas orgulhou e empolgou espectadores, há rumores na imprensa que a CBF considera acabar com a seleção permanente feminina. Vale lembrar que a seleção masculina existe desde meados do século XX e que teve a oportunidade de disputar inúmeras Olimpíadas no decorrer desses anos todos até conquistar uma medalha de ouro neste ano – além do investimento ser infinitamente superior que o do futebol feminino. Então, caso esse rumor se confirme, será uma atitude altamente desigual, e esta responsabilidade deve ser cobrada da confederação – e não só pela sociedade civil, mas pela mídia também e, sobretudo, pelas televisões que usam concessões públicas.
Nota da Redação: O Coletivo Intervozes preparou uma séria especial de matérias e entrevistas sobre a cobertura das Olimpíadas Rio 2016.
Acesse a íntegra no site de origem: A cobertura comercial dos Jogos Olímpicos ficou marcada pelo sexismo (Intervozes, 22/08/2016)