A criminalização do aborto: execução arbitrária de mulheres em debate no STF, por Ingrid Leão

30 de agosto, 2018

A morte por aborto é uma execução arbitrária quando o óbito de mulheres está relacionado a uma legislação criminalizadora. Dessa maneira, está no ordenamento jurídico a responsabilidade por discriminar mulheres no exercício do direito à vida, por isso a noção de assassinato com participação do Estado (execução) não depender de uma ação do Estado.

(Justificando, 29/08/2018 – acesse no site de origem)

Compreende-se “arbitrária” no sentido de discriminação do direito à vida, isto é, a ocorrência morte atinge “unicamente as mulheres em função de discriminação consagrada em lei”. Assim explicou a Relatora da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais, Agnes Callamard, ao apresentar o seu primeiro relatório ao Conselho de Direitos Humanos em 2017, dedicado a um enfoque de gênero a respeito de execuções arbitrárias.

O relatório, ao tratar do aborto, situa a questão no mundo com base nas informações da Organização Mundial de Saúde sobre 22 milhões de abortos inseguros por ano e 47.000 mortes de mulheres, das quais a maioria é em lugares em que a prática de aborto é crime.

A relação vida e saúde encontra no óbito a sua máxima expressão, mas não se limita a essa experiência no exercício dos direitos em questão. Acrescenta-se que além da perda arbitrária da vida, a proibição da interrupção da gestação atinge os serviços de saúde, empurram mulheres para situação de riscos e lesão permanente à saúde sexual e reprodutiva.

Por conta dessa relação entre vida, discriminação e violência estatal, retomamos a análise da especialista da ONU para o contexto do Brasil, país que conta com uma legislação punitiva desde os anos de 1940, número de óbitos de mulheres subnotificados que chegam a 770 registro de 2005 a 2016, de acordo com o SIM/Datasus do período, e iniciou em agosto de 2018 o debate público sobre a revisão do ordenamento jurídico a partir da atuação do Supremo Tribunal Federal, com a análise da ADPF 442 – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental. A ação considera que o código penal não está em consonância com o princípio da igualdade e os direitos humanos afirmados na Constituição de 1988, e por isso requer a descriminalização do aborto até a 12 semana de gestação.

O envolvimento do Estado com a manutenção de um instrumento institucional tal qual é uma legislação discriminatória, uma violência institucional a partir do ordenamento jurídico, são marcantes para a história de vida e mortes de mulheres: legislações sobre penalização do adultério, perdão ao violador que contrair matrimônio e ainda o que se conhece por “crimes de honra”. São circunstâncias em que meninas e mulheres enfrentam uma discriminação por força de lei em diferentes partes do mundo.

Compreender as relações de gênero para se entender a diferença na aplicação do direito é imprescindível quando o assunto é discriminação. Olhar a realidade e os “processos contínuos de violência” se impõem quando estamos diante de morte evitável. O mesmo podemos falar em relação a internação por complicações por aborto inseguro, cerca de 200 mil por ano no sistema público de saúde.

O estado sabia ou deveria saber sobre as mortes de mulheres por aborto. O que faz em relação a elas?

É disso que se trata a oportunidade das audiências no Supremo realizadas nos dias 03 e 06 de agosto. Realizaram-se audiências para saber mais da vida cotidiana, das relações sociojurídicas, de como o direito existe para as mulheres, especialmente as mulheres que são estatísticas de saúde pública: as mulheres negras e pobres.
Do contrário, bastaria cada consciência acender sua lâmpada individual e adestrar a caneta.

Há de se considerar um obstáculo para o exercício de harmonização da normativa brasileiro com os direitos humanos das mulheres, sob a perspectiva da não discriminação e da não violência de Estado, está na abordagem sobre gênero. Falar em perspectiva de gênero é retomar um tema que nem todos querem assumir.

As diferenças entre gênero e sexo, a própria ONU fez questão de afirmar que “o gênero produz vulnerabilidades e riscos específicos relacionados com a maneira em que as sociedades organizam os papéis masculinos e feminino e excluem a quem sair desses papéis. Ao cruzar com outras identidades, com outra raça, etnia, deficiências, e idade, que também servem para organizar as sociedades, o gênero agudiza, ou reduz, os riscos e as vulnerabilidades a respeitos da vulnerabilidade dos direitos humanos em geral e da morte em particular”.

As meninas e mulheres já sofrem com a violência sexual na família, a violência doméstica e o estupro em espaços públicos. Como tratar com a violência relacionada às previsões normativas? É um processo inverso. Países que facilitam acesso aos serviços de interrupção da gravidez não incrementaram os números de abortamento em suas estatísticas, ao contrário, reduziram em face do que a despenalização potencializa em informação em serviços em saúde.

Recomenda o documento da ONU que toda a estrutura do Estado, incluindo o ordenamento jurídico e as políticas públicas, devem trabalhar eficazmente para prevenção de mortes provocadas pelo Estado ou agentes não estatais. Aqui entendemos o papel do Judiciário na proteção jurídica das mulheres em sua dignidade e direitos em uma circunstância de difícil omissão frente ao que pode significar a justiça de gênero.

Chegou a momento de debater no judiciário sobre o que fazer com a morte de mulheres, risco de morte ou dano à saúde com a criminalização de mulheres. Que venha à tona os diferentes aspectos da negação e afirmação de direitos das mulheres para além das audiências sobre aborto. É só o começo!

Ingrid Leão é Doutora e Mestra em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, pesquisa execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais. É integrante do CLADEM- Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher.

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