(Clam, 04/06/2014) As eleições presidenciais brasileiras ocorrem em outubro deste ano. Mas o processo eleitoral já está nas ruas e nos espaços políticos institucionais. Como aconteceu em 2010, a pauta novamente está incorporando, a partir da mobilização de setores religiosos dogmáticos que têm chantageado líderes políticos e candidatos, temas que dizem respeito aos direitos das mulheres, em especial os sexuais e reprodutivos.
Em abril, o candidato à Presidência pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), Eduardo Campos, afirmou ser contra o aborto e que a legislação brasileira – que apenas permite a interrupção da gravidez em casos de gestação decorrente de estupro e em casos de risco à vida da mulher, além dos casos de fetos anencéfalos (conforme decisão do Supremo Tribunal de 2012) – é adequada. Declaração semelhante foi dada pelo pré-candidato Aécio Neves (Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB), que também afirmou que a legislação atual é adequada.
Cabe a pergunta: adequada para quem? A ilegalidade da prática condena milhares de mulheres (sobretudo as mais pobres) a realizarem o aborto através de métodos inseguros, colocando a interrupção da gravidez como a quinta causa de mortalidade no país, segundo dado do Ministério da Saúde. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (2010), realizada pela Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, uma em cada cinco mulheres brasileiras até os 40 anos já interrompeu a gravidez, ilustrando como as declarações de Eduardo Campos e Aécio Neves não apenas destoam da realidade, como projetam obstáculos para uma discussão lúcida e atenta à real dimensão do aborto na sociedade brasileira.
O Brasil é signatário das Conferências do Cairo (1994) e Pequim (1995), que definiram princípios para os direitos sexuais e reprodutivos. As Conferências, que compuseram o ciclo social da ONU nos anos 1990, construíram um entendimento de que a vida sexual e reprodutiva de cada indivíduo deve ser regida de forma autônoma, livre de coerção e violência e calcada nas escolhas pessoais. No entanto, o país caminha na contramão das diretrizes que duas décadas atrás adotou como compromisso, com recuos legais e jurídicos. E o contexto eleitoral tem contribuído decisivamente para a situação, influenciada por uma mobilização política de discursos dogmáticos que têm prevalecido, inclusive, sobre a diversidade de convicções religiosas. Nesse panorama, candidatos, autoridades e gestores seculares têm cedido a tal movimento.
Desde a campanha de 2010, o aborto foi alçado à condição de munição para ataques eleitorais. A então candidata pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Dilma Rousseff, recuou em sua posição de defesa da legalização da prática, enviando uma carta a igrejas cristãs dizendo-se pessoalmente contrária à interrupção da gravidez e que, uma vez eleita, não tomaria iniciativa para modificar a legislação.
De fato, a legislação não foi alterada. O texto inicial da reforma do Código Penal, que tramita no Congresso, previa a possibilidade de aborto nas 12 primeiras semanas de gestação, caso a mulher não tivesse capacidade psicológica atestada por profissionais de saúde. A previsão foi retirada na versão final do texto, sob a justificativa do senador e relator Pedro Taques (Partido Democrático Trabalhista – PDT) de que a legalização do aborto violaria o artigo 5º da Constituição – o direito à vida. O governo federal não se manifestou contra a mudança. O texto final, vale dizer, contraria a opinião da Comissão de Reforma do Código, que foi composta por 16 operadores do Direito. Dos 16 integrantes, apenas um tinha se colocado contra a descriminalização do aborto.
O Congresso Nacional tem se notabilizado por ser um espaço de atuação crescente e explícita de parlamentares que se pautam pelo dogmatismo. O Estatuto do Nascituro, que concede ao embrião o mesmo status jurídico de uma pessoa nascida e viva, é um produto direto dessa atuação, conduzida por correntes evangélicas, católicas e espíritas: tais setores defendem a ideia de vida desde a concepção. Nesse sentido, o projeto do Estatuto, se transformado em lei, estrategicamente derrubaria qualquer possibilidade de interrupção da gravidez, mesmo nos casos previstos na legislação. Além disso, o texto prevê o pagamento de uma bolsa para as mulheres vítimas de estupro que decidirem ter o filho. É a chamada bolsa-estupro, severamente condenada por movimentos de direitos humanos das mulheres.
A ofensiva de tais setores no Congresso Nacional também pode ser observada no PL 6583/2013 (Câmara), que trata do Estatuto da Família, e nos projetos PL 6998/2013 (Câmara) e PLS 50/2014 (Senado), que introduzem a ideia de primeira infância no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O Estatuto da Família define como entidade familiar o núcleo social formado por um homem e uma mulher e integra os esforços de tais setores de organizar o Estado a partir de uma compreensão específica de família. Tal projeto representa não apenas um obstáculo a casais homoafetivos que desejam formalizar a união e/ou adotar filhos; seu teor heteronormativo e biologizante reforça a ideia de que ter filhos é “natural”. Não à toa, em um de seus artigos, está previsto “assistência prioritária à gravidez na adolescência”, privilegiando a gravidez em si em detrimento à mulher gestante, o que significa o não reconhecimento da autonomia da mulher sobre o seu corpo.
O PL 6998/2013 e o PLS 50/2014 tratam de diversas questões relativas ao ECA e, em determinado momento, estendem o direito à vida desde a concepção, o que significa um obstáculo ao direito à mulher sobre sua vida reprodutiva. Também tramita no Congresso o Estatuto da Reprodução Assistida, que proíbe o descarte de embriões tendo como referência a ideia de vida desde a concepção.
Na arena parlamentar, tais setores têm patrocinado essas iniciativas, que mobilizam seu eleitorado e, com a linguagem dramática de proteção de seres indefesos, dificultam uma discussão racional sobre aborto. Através dessa atuação, eles têm logrado chantagear os líderes políticos. Ano passado, a presidente Dilma Rousseff promulgou a Lei 12.845, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Uma das medidas da lei prevê a distribuição de pílula do dia seguinte para evitar a gravidez da mulher vítima de estupro. A promulgação da lei foi cercada de pressões. Embora o governo federal a tenha promulgado, os setores dogmáticos continuam atuando para revogar a decisão, por meio do PL 6033/2013.
A batalha pelo corpo da mulher tem sido ampla e persistente nos poderes federais. No final de maio, o Ministério da Saúde publicou a portaria 415, que incluía o registro específico do aborto previsto em lei na tabela de serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A medida representou um avanço no acesso aos serviços de abortamento legal. Um avanço breve, no entanto: dois dias depois, o Ministério da Saúde revogou a portaria, cedendo a pressões de parlamentares que, entre outros argumentos, afirmaram que os R$ 443,40 referentes ao procedimento sinalizam o “desapreço” que se tem pela vida. O recuo gerou uma nota de repúdio de entidades ligadas à saúde e aos direitos das mulheres.
O cenário, nesse sentido, tem sido desfavorável em matéria dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Os setores que usam do dogmatismo como arma política e eleitoral parecem menos interessados em defender, de fato, a vida humana do que em articular a manutenção e expansão de seu poder. A Constituição brasileira não define a vida como desde a concepção. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 2008, que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida, nem a dignidade da pessoa humana. Em um voto considerado histórico, o então relator do caso, ministro Ayres Brito, afirmou que para existir vida humana é necessário que o embrião seja implantado no útero humano. “O conceito de vida humana está revestido de uma dimensão biográfica mais do que simplesmente biológica, que se corporifica em sujeito capaz de adquirir direitos e contrair obrigações em seu próprio nome, a partir do nascimento com vida”, argumentou o ministro durante o julgamento.
Nessa semana, a presidente Dilma Rousseff, candidata à reeleição, manteve o posicionamento que vem demonstrando desde 2010, ao defender em entrevista ao jornal O Globo o aborto por razões médicas e legais. Questionada sobre a revogação da portaria 415, foi evasiva ao afirmar que os casos de aborto legal devem ser atendidos em qualquer hospital da rede pública.
Os principais candidatos têm privilegiado uma posição defensiva, por cálculo eleitoral e de manutenção e conquista de poder. Usam a estratégia de sair pela tangente quando o assunto é aborto, afirmando serem favoráveis à manutenção da legislação como ela está, sem querer se comprometer com as convicções de suas bases aliadas. Na verdade, o que os candidatos precisam saber, apontam representantes do movimento feminista, é a diferença entre “aborto” e “direito ao aborto”. Não está se defendendo o aborto. O que é discutido é o direito ao aborto e a dignidade da mulher. Além disso, tanto os candidatos quanto os gestores e líderes políticos poderiam considerar a pluralidade que marcam as religiões, não se dobrando à exploração dogmática que contribui decisivamente para o quadro de ilegalidade e consequentes mortes por abortos inseguros. Nesse sentido, a atuação dos movimentos de mulheres e direitos humanos é de fundamental importância. Tratar e discutir a questão do aborto como um problema social e de saúde pública é um passo importante para a afirmação dos direitos e da dignidade da mulher.
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