Câmara dos Deputados, tomada por fundamentalistas e conservadores, não aceita sequer iniciar o debate para evitar as mortes de mulheres por abortos inseguros
(O Globo, 08/05/2018 – acesse no site de origem)
O Congresso argentino, por iniciativa do governo Macri, após muitos anos de luta dos movimentos de mulheres, começou a debater a legalização do aborto. Todo dia, a Câmara dos Deputados realiza audiências públicas, transmitidas ao vivo na TV e na internet, com a participação de centenas de especialistas, ativistas e representantes de instituições que são a favor e contra a legalização da interrupção voluntária da gravidez no sistema público de saúde, que viria acompanhada de políticas para prevenir a gravidez indesejada. Depois das audiências, o projeto será discutido e votado pelo Parlamento. Espero que seja aprovado.
Foi o mesmo método — debate público e ampla participação cidadã — usado oito anos atrás para a legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, no governo de Cristina Kirchner. A Argentina foi o primeiro país da América Latina a reconhecer esse direito aos homossexuais. Dois presidentes de diferente orientação ideológica entenderam a necessidade de debater sem medo os direitos que o Estado ainda negava às mulheres e à população LGBT.
Mas a decisão surpreendente do governo argentino, de centro-direita, não foi fruto, apenas, da boa vontade do presidente, como tampouco foi no caso do casamento igualitário durante o governo anterior. Nos últimos anos, centenas de milhares de mulheres encheram as ruas do país para lutar pela igualdade salarial, contra a violência de gênero, por uma educação não sexista, contra o machismo, pela criminalização do feminicídio e, também, pela legalização do aborto. O movimento #NiUnaMenos, que nasceu na Argentina e se espalhou pelo mundo, aproveitou o exemplo da luta da população LGBT pelo casamento civil, entre outras experiências. As pesquisas mostram que entre 60% e 70% do país apoiam a legalização do aborto, um dado que os políticos levam em consideração.
Em escolas, universidades, bairros, nas redações dos jornais e nos ambientes de trabalho, milhares de mulheres levam o lenço verde da campanha pelo aborto legal, seguro e gratuito. Recentemente, a premiada escritora Claudia Piñeiro o levou para fazer o discurso inaugural da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires. Foi bonito!
No Brasil, infelizmente, estamos muito atrás. O casamento igualitário foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, após uma representação do meu mandato assinada pelo PSOL e a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio de Janeiro, mas o Congresso faz de conta que não sabe e se recusa a reconhecer na lei o que de fato já existe: os casais formados por gays e lésbicas já podem se casar.
E o aborto é tabu. Em 2015, eu apresentei o projeto de lei 882, inspirado na campanha pelo aborto seguro, legal e gratuito da Argentina e nas leis espanhola e uruguaia, e elaborado em parceria com movimentos feministas. Mas a Câmara dos Deputados, tomada por fundamentalistas e conservadores, não aceita sequer iniciar o debate desse projeto tão necessário para evitar as mortes de mulheres por abortos inseguros e garantir o direito de todas elas a decidir se e quando querem ter filhos, porque a gravidez é escolha, e não destino. Meu projeto também garante a educação sexual, a prevenção da gravidez indesejada e o acesso aos métodos contraceptivos.
Tomara que o Brasil aprenda a lição dos nossos hermanos. Ainda estamos a tempo de ingressar no século XXI.
Jean Wyllys é deputado federal (PSOL-RJ)