Uma onda verde avança na América Latina. Teve início no extremo sul da região. Quando eleito, o Papa Francisco surpreendeu-se com a escolha, pois “venho quase do fim do mundo”, disse ele. Para nós, a Argentina não é o fim do mundo, e a razão é mais do que a rivalidade no futebol: para as mulheres, nasce ali a esperança. É de lá que se anuncia uma decisão inédita do Congresso Nacional – a possibilidade de descriminalizar o aborto até as primeiras 14 semanas de gravidez. Se aprovada como lei, nenhuma mulher mais poderá ser presa por interromper uma gestação.
(Folha de S.Paulo, 14/06/2018 – acesse no site de origem)
Como o Brasil e outros países da América Latina e Caribe, a Argentina é um país entranhado na cultura patriarcal, em que desde os anos 1920 se acredita no uso da lei penal para controlar os corpos das mulheres – uma mulher que faça aborto pode ser penalizada com até 4 anos de prisão. No Brasil, o Código Penal que criminaliza o aborto é de 1940, e uma mulher pode ser presa por até 3 anos, ou investigada até 8 anos depois de realizado o aborto. Além do medo da prisão, há a tortura do silêncio imposto pela lei penal. É para modificar esse quadro injusto contra as mulheres que a onda verde saiu às ruas.
Não foram só mulheres que pediram “tirem seus rosários dos meus ovários” ou “nenhuma mulher morta por aborto clandestino” pelas esquinas de Buenos Aires. Foi todo tipo de gente, como diz a música espanhola sobre a onda feminista pelo país: havia mulher, trans, homem, criança, velho. Talvez, tenham faltado os bispos ou pastores na onda verde, mas alguns mostraram seu respeito pelo silêncio. Há coerência no silêncio obsequioso, pois o projeto de lei fala de valores cristãos para a vida. É pela dignidade, saúde e liberdade de consciência ou crença que um país deve descriminalizar o aborto. Retirar o caráter de crime é respeitar a liberdade de pensamento, inclusive de religião.
Nenhuma mulher será obrigada a fazer um aborto nem na Argentina, nem em nenhum outro país do mundo que o tenha descriminalizado. Cada mulher será livre, no respeito às suas crenças, para tomar a decisão. Hoje, é a liberdade de crença o que se viola ao criminalizar o aborto: as mulheres são carregadas ao risco da clandestinidade, por isso um dos dizeres mais fortes das ruas era “todos somos pró-aborto. Uns pró-aborto clandestino, nós pró-aborto legal”. Vivemos na região do mundo com maior taxa de aborto e, não por coincidência, somos quem mais acredita que a lei penal pode coibir o aborto. Sei que é difícil de entender, mas a fórmula é ao contrário: lei penal não diminui aborto, aumenta. Somente a descriminalização é capaz de reduzir o número de abortos.
A explicação da fórmula é simples, apesar do caráter contra-intuitivo. A legalidade garante que os serviços de saúde ou de educação possam falar de prevenção ao aborto, como menciona o projeto de lei. Quando uma mulher chega a um hospital com evidências de um aborto provocado, hoje, ela não conta a verdade aos profissionais de saúde. Por que? Por medo de ser denunciada. A consequência é que se perde a chance de entender o que se passa na vida desta mulher para que tenha feito um aborto. Perdemos uma oportunidade de prevenção. O que seria prevenção ao aborto? Garantir políticas de saúde acessíveis e universais ao planejamento familiar: desde acesso à informação ao uso correto de métodos anticonceptivos. É isso que diz o debate político na Argentina.
O projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 14 de junho: ganhou o lenço verde, símbolo do sim à vida das mulheres, descrito na proposta como “igualdade real de oportunidades”. Foram 129 votos a 125, um placar apertado, é verdade. Se olharmos para fora do plenário dos deputados, veremos que não há comparação no placar: eram milhares de pessoas com o lenço verde, as fábricas de tecidos não conseguiram responder a demanda. Tanto lá quanto aqui, o tema movimenta paixões, e alguns o consideram matéria religiosa. É acima de tudo uma questão democrática, pois “nem mortas, nem presas por abortar. Aborto legal é uma dívida da democracia”.
Também no Brasil há uma dívida da democracia às mulheres e que o Supremo Tribunal Federal poderá solucionar em breve. Em agosto próximo serão realizadas as audiências públicas sobre descriminalização do aborto, sob a relatoria da Ministra Rosa Weber. É certo que a corte suprema não se move pelas ruas como a política partidária, que até o último instante balançou os indecisos da história no parlamento argentino – esperamos a soberania da razão pública para correção de nosso Código Penal à luz da Constituição Federal de 1988. Mesmo assim, estou certa de que a onda verde que teve início no fim do mundo se agiganta para crescer em Brasília. Seremos milhares de mulheres se somando às argentinas para propagar o “sim à vida das mulheres” nos países da América Latina e Caribe.
Debora Diniz é Antropóloga, Professora da Universidade de Brasília e Pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética)