Durante o último dia do 10º Congresso Brasileiro de Epidemiologia, na tarde de 11 de outubro, uma mesa redonda facilitou uma discussão sobre aborto a partir de uma visão macro da América Latina – afunilando até alcançar o recorte que titulava o espaço: Avanços e retrocessos sobre a prática e a regulamentação do aborto no Brasil. A contextualização a partir da conjuntura latino-americana esboçou um cenário para que se esmiuçasse, então, a prática do aborto legal e ilegal em território brasileiro. Na mesa palestraram a psicanalista doutora em saúde pública Margareth Arilha, da UNICAMP; Greice Menezes, doutora em saúde pública e pesquisadora da UFBA ; e o ginecologista e obstetra Jefferson Drezzett.
(Abrasco, 20/10/2017 – acesse no site de origem)
Um panorama sobre direitos reprodutivos das mulheres na América Latina
Existem oito países no mundo em que o aborto é proibido em toda e qualquer circunstância, quatro na América Latina: El Salvador, Nicarágua, Honduras e República Dominicana. Margareth Arilha trouxe um panorama geral sobre a discussão no centro-sul americano, que é antiga, extensa – e em alguns casos, como nos países citados, distante de um resultado progressista em prol dos direitos reprodutivos das mulheres. Mas a mesa redonda também trouxe boas notícias. O Chile, em agosto passado, descriminalizou o aborto em caso de gravidez decorrente de estupro, perigo de vida para a mãe e inviabilidade do feto. Desde 1989, na ditadura de Pinochet, o país proibia o aborto absolutamente.
Na Bolívia, pouco mais de um mês depois, em 28 de setembro, a lei também sofreu uma modificação: antes, só eram isentas da criminalização e penalização mulheres vítimas de estupro e correndo risco de vida. Agora, também não se punem abortos praticados antes de 8 semanas por estudantes, cuidadoras de idosos, crianças e deficientes. Adolescentes não serão punidas em nenhuma etapa da gravidez. A rede de saúde pública deve realizar os procedimentos quando legais, no entanto, o aborto segue considerado crime e o debate no país continua. Confira aqui a atualização da lei sobre aborto na Bolívia.
A capital do México se transformou numa ilha em relação ao restante do país pois, desde 2007, tem uma abordagem diferente, que pode ser considerada ideal na luta contra a criminalização do ato: “Não se considera como aborto na Cidade do México a interrupção da gravidez realizada até 12 semanas. Paradoxalmente, a cidade conseguiu ampliar suas possibilidades enquanto o país restringiu ainda mais a sua legislação, causando uma série de dificuldades para as demais cidadãs”, ponderou Margareth. Na linha comparativa entre os países, também destaca Cuba – que tem o aborto legalizado até a 10ª semana em qualquer circunstância, desde 1965 – e Uruguai, que inovou não só despenalizando o aborto como tratando-o como uma questão de saúde, a partir de 2012. O contraste com El Salvador é impactante: lá, houve um retrocesso. De 1973 a 1997 era permitido o aborto nas três exceções que se repetem pelos países. Agora, qualquer situação é duramente penalizada .
Margareth concluiu sua fala enaltecendo a luta feminista na América Latina e a influência do movimento das mulheres nas conquistas até aqui. Atentou também para as diferença gritantes na realidade de cada país, quanto ao entendimento e execução do abortamento apesar da aparente igualdade no âmbito legal apresentada:”Não se pode pensar que a conquista da lei permite a solução para todas as mulheres, ao contrário: o processo de busca de saúde , direitos, dignidade e liberdade deve ser contínuo e permanente”.
Brasil: aborto – legal ou ilegal – é tratado com descaso e despreparo
Depois da contextualização ampla de Arilha, foi a vez de Greice Menezes traçar um duro e sangrento quadro sobre a realidade dos abortos ilegais no Brasil. Aqui, desde 1940, o aborto está no Código Penal Brasileiro. Não se fala sobre planejamento familiar, saúde da mulher, direitos reprodutivos. É crime. As exceções para as punições de um a três anos – para a mulher que aborta – e de três a dez anos – para quem auxilia ou realiza o aborto – são as já repetidas anteriormente: gravidez em decorrência de estupro, saúde da gestante e, mais recentemente, fetos com anencefalia.
A pesquisadora tentou driblar a inconsistência dos dados para apresentar o eixo Aborto e saúde: desafios atuais para a ação política. “Em um país onde o aborto é ilegal, não só no Brasil, a gente deve ter a paciência de lidar com a imprecisão dos dados. A gente não tem estatísticas e nem dados confiáveis. O número de abortos é estimado através das pesquisas em internações hospitalares do SUS “, explica. A fim de apresentar números mais sólidos, Greice também explorou a Pesquisa Nacional sobre Aborto, realizada em 2016 por Débora Diniz, abrasquiana, membro do GT Bioética da Associação e fundadora do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Os resultados da pesquisa foram obtidos através de inquéritos com mulheres que se dispuseram a falar sobre os abortos induzidos que vivenciaram. No Brasil, 1 em cada 5 mulheres aos 39 anos de idade já fez aborto – 67% das mulheres têm filhos, 88% declaram ter religião e as maiores taxas estão entre negras e indígenas, de menor instrução, do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país. Greice aponta que o perfil das mulheres é muito distinto daquela percepção que alimenta o senso comum, “de que abortam as mulheres pobres, jovens, que exercem a sua sexualidade de forma irresponsável , que tem o acesso à contracepção fácil e não usa”.
Estudos sobre a mortalidade por aborto induzido são poucos e antigos. Estima-se uma tendência ligeiramente decrescente das mortes por aborto, através das informações encontradas no sistema de óbitos classificados do SUS de 1996 a 2014. No Sistema Único de Saúde registram-se pouquíssimos casos de morte por aborto legal (0,4%), e um número mais marcante em aborto não especificado (53,1%) e falha na tentativa de aborto (9,8%) que é onde se supõe estarem os abortos ilegais e inseguros, provocados. As desigualdades permanecem mesmo com a diminuição das mortes: as mulheres negras e de baixa escolaridade ainda morrem mais.
Menezes ainda problematizou a atenção ao abortamento, ou seja, o cuidado que as mulheres recebem quando internadas após ou durante o aborto induzido. Aí, ela expôs o despreparo e o distanciamento do que é orientado pelas normas de atenção: há uma série de violências verbais e físicas, negligências, descuidado, maus tratos. As pacientes demoram para serem atendidas, são ameaçadas de denúncias à polícia, não são informadas sobre os procedimentos médicos e algumas mulheres relataram até que lhes mostraram os restos do feto, como punição.
Diante disso, Greice afirmou que é necessário requalificar o argumento do aborto como problema de saúde pública, ainda na luta pela legalização. “Os dados continuam imprecisos, as mortes continuam sub notificadas. O que está em jogo? A criminalização é associada a um projeto de sociedade em que as mulheres são coladas à maternidade, à família heterossexual. Não é só uma questão das mulheres”.
Jefferson Drezzett, o último palestrante da mesa, já realizou mais de 600 abortos legais ao longo da carreira. Ele trabalha no Hospital Pérola Byington, que pertence ao estado de São Paulo e é referência nacional em interrupções da gravidez em casos de violência sexual. O Pérola Byington fez uma pesquisa avaliando como as mulheres chegam ao hospital, comparando o período recente – 2015 e 2016 – com o longo período anterior – de 1994 a 2014. Antes, 40% dos casos chegavam encaminhados via autoridade policial. Agora, a participação da polícia caiu para 20% e mais da metade das mulheres procuram o serviço de forma espontânea.
O estudo se deu a fim de entender o aumento expressivo na quantidade de abortos realizados pela instituição nos últimos dois anos: em 2012, foram 97 casos. Em 2016, 245. Entretanto, segundo Jefferson, não há indicadores de que a rede está mais eficiente, ou de que a qualidade de atenção melhorou, sequer que estão fazendo melhores encaminhamentos em casos de gravidez decorrentes de estupro. Os números de mulheres encaminhadas vindo da defensoria, do judiciário, da promotoria são baixíssimos: “Tem um espectro legal tão contundente e uma participação tão pequena desses setores. O que temos, agora, é o Google . As mulheres têm encontrado caminhos por elas mesmas em um país que as tem abandonado por largos e largos anos. De fato, mulheres, caminhem por aí ”
Drezzett expõe como o aborto legal ainda é tratado – subjetivamente e institucionalmente – quase como se fosse crime também. Apesar da ajuda do Google, ainda é difícil encontrar pontos de apoio para as mulheres. Ele cita também a pesquisa de Débora Diniz “Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional” , que avaliou 68 serviços de saúde classificados como referência pelo Ministério da Saúde. Desses, 45,6% não realizavam de fato o procedimento: 28 suspenderam atendimento, 4 nunca o realizaram.
Outro ponto grave, mais números assustadores que se somam aos tantos outros discorridos ao longo da palestra conjunta: em casos de estupro, 14% dos serviços exigem Boletim de Ocorrência – BO, 8% exigem laudo do Instituto Médico Legal – IML e 8% exigem alvará judicial. Segundo a lei, as mulheres não são obrigadas a apresentar BO em caso de violência sexual. Na prática, não é como funciona. Jefferson é duro quando expõe seu entendimento sobre, afirmando que “Quase metade dos casos fizemos [no Pérola Byington] sem boletim policial. Isso é absolutamente possível de fazer, estar aqui, dizer que faz, sem nenhum conflito com a lei – como não tenho” .
“Admitimos a toda comunidade internacional que nas condições que o aborto não contrariasse a lei ele seria acessível e seguro para as mulheres. Nós temos três condições no Brasil que o aborto não contraria a lei e que deveria ser seguro, acessível, essa conferência deveria ser desnecessária. É vergonhoso ter que discutir o total descumprimento do estado brasileiro frente aos direitos que essas mulheres têm. Dos 68 serviços [para realização de aborto legal] temos 37, dos 37 boa parte deles age em desconformidade com a lei. Em vez de crescermos, reduzimos. E essa é a situação das mulheres”, termina Jefferson.
Recentemente a Abrasco uniu-se como amicus curiae à ação no STF que pleiteia a declaração de inconstitucionalidade do crime de aborto até 12 semanas de gestação. Assim, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva reitera seu posicionamento a favor da saúde das mulheres. Entenda aqui.