Aborto no Brasil: uma história interminável, por Manoela Miklos e Lena Lavinas

22 de janeiro, 2018

No Brasil, 500.000 abortos clandestinos são praticados a cada ano, com cerca de 200.000 levando a complicações pós-realização, e produzindo 500 mortes. Mas, a discussão sobre a legalização parece estancado. 

(Open Democracy, 22/01/2018 – acesse no site de origem)

Quem frequenta surveys e surfa pelas estatísticas, sabe da faca de dois gumes que é elaborar questionários cujas perguntas podem induzir respostas que acabam descambando para um lado ou seu extremo oposto. Exemplo disso o que se passou em 2005 quando foi lançado o referendo sobre a proibição do comércio de armas.

As inúmeras sondagens de opinião que precederam a consulta popular indicavam que a sociedade defendia majoritariamente a proibição, no intento de reduzir as elevadíssimas taxas de homicídio que situam o Brasil entre as nações líderes na barbárie (em 2016 foram contabilizados 61 mil assassinatos).

Na hora H, entretanto, o tiro saiu literalmente pela culatra, como sói acontecer quando o tema é manuseio de armas de fogo. O resultado revelou que a “bancada da bala” curvara o país à sua insanidade: 63,9% dos brasileiros mostraram-se favoráveis ao comércio de armas em nome da legítima defesa, debilitando um dos marcos importantes da longa fase de redemocratização do país que foi a criação, em 2003, do Estatuto do Desarmamento.

As pesquisas sobre o grau de adesão da população à ideia de que o aborto deve ser completamente descriminalizado e legalizado no Brasil reúnem com frequência interpretações contraditórias.

Ainda que seja fácil para qualquer campanha manipular o medo e explorar a insegurança dos cidadãos, ainda mais numa sociedade em que os índices de violência sobem linearmente a cada ano, é bastante provável que a forma como foi elaborada a questão tenha influenciado incisivamente sobre o placar final.

As pesquisas sobre o grau de adesão da população à ideia de que o aborto deve ser completamente descriminalizado e legalizado no Brasil são alto risco pelas mesmas razões. E, não por acaso, umas e outras reúnem com frequência interpretações contraditórias.

Os recentes resultados do levantamento do Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Instituto Locomotiva, de dezembro de 2017, merecem atenção. Uma primeira constatação alarmante é de que apenas um em cada quatro brasileiros adultos é favorável ao aborto legal e seguro, expressão da livre escolha da mulher. Outro dado constrangedor e inconveniente: 50% dos entrevistados julgam que uma mulher que pratica aborto deve ser punida com a prisão.

Portanto, é amplamente difundida a ideia de que aborto é crime, numa atitude reflexa do que diz o código penal, que assim tipifica a interrupção voluntária da gravidez, ato ilegal, passível de cadeia, para quem o pratica e para quem facilita tal procedimento.

Numa sociedade onde a criminalização e a judicialização de tudo e todos é a regra, inundando as prisões – cuja taxa de ocupação é de 198% enquanto 40% dos detentos encontram-se em regime provisório, sem jamais ter sido julgados –, há que se interpretar tais respostas como inerentes a um contexto mais difuso, produto da inércia de uma realidade estanque, e não propriamente associadas à questão em si.

Para 8 em cada 10 brasileiros e brasileiras, o aborto deve ser tratado como tema de saúde

Ademais, surveys acadêmicos de há muito confirmam que ações e percepções dos indivíduos tendem a ser influenciadas por políticas públicas e normas sociais vigentes e não o contrário, isto é, por aquilo que não é prática ou valor referendado. Logo, considerando serem feitos aproximadamente 500 mil abortos clandestinos por ano no Brasil, com cerca de 200 mil levando a complicações pós-realização do procedimento que terminam onerando o sistema público de saúde, sem falar na média de 500 mortes ao ano, é plausível supor que tolerar um quadro aterrador e sinistro como esse é menos escolha racional, opção consciente ou simples preferência do que letargia e prostração intelectual.

É o que fica evidenciado quando a questão é formulada alterando-se as referências. Para 8 em cada 10 brasileiros e brasileiras, o aborto deve ser tratado como tema de saúde. Notícia excelente e alvissareira por relativizar percepção prévia e inquietante captada pela mesma pesquisa. Como aponta o gráfico abaixo, apenas um em cada 10 veem o aborto como caso de polícia.

Entretanto, também reconhece a pesquisa que a opinião dos brasileiros retrata familiaridade com o problema. Os números são os que seguem:

O que essas cifras nos dizem? Além de mostrar que mais de 70 milhões de pessoas estão familiarizadas com a prática do aborto ilegal, indica ainda que a interrupção da gravidez pode vir a ser mais bem aceita pela população, dependendo da situação.

Apesar de a maioria dos brasileiros e brasileiras se declarar contrária à interrupção da gravidez, 8 em cada 10 julgam legítimo realizá-lo nos seguintes casos:

E há um número ainda mais interessante: 75% dos que se disseram contrários ao aborto por princípio, quando colocados diante da questão sem nenhuma nuance, se mostraram igualmente favoráveis à interrupção da gravidez tratando-se de casos concretos.

Enfim, diante da frase “eu jamais interromperia uma gravidez”, metade das mulheres entrevistadas concordou com tal afirmação. Mas 33% disseram não concordar nem discordar. E somente 16% exprimiram discordância.

O curioso e intrigante é cotejar tais resultados com aqueles sistematizados, também em 2017, por outro survey conduzido, desta feita, pela organização feminista “Católicas pelo Direito de Decidir”. A pesquisa de opinião pública de espectro nacional, intitulada Percepções sobre Aborto e Educação Sexual, aplicada pelo IBOPE Inteligência, traz informação valiosa: 64% dos brasileiros entendem que a decisão sobre aborto cabe exclusivamente à mulher, um aumento de 3 pontos percentuais em relação à mesma pesquisa realizada em 2010.

Resumidamente, temos um quadro que contesta por completo o pensamento ativista conservador anti-aborto que tenta fazer crer que a sociedade brasileira é intolerante, insensata e míope frente a uma realidade impactante. Porém, mais surpreendente ainda é o conjunto de respostas que buscou apreender o ponto de vista daqueles que declararam alguma fé religiosa. Indagados sobre “quem deve decidir se a mulher pode ou não interromper uma gravidez indesejada”, 2/3 dos católicos e 58% dos evangélicos concordaram que a decisão cabe à própria mulher. São percentuais em alta se comparados a 2010.

Da mesma maneira, a proporção dos entrevistados que discorda totalmente ou em parte da prisão de uma mulher que recorreu ao aborto é de 65% entre os católicos e 59% entre os evangélicos.

Pode não haver a plena compreensão do que significa vivenciar a experiência de um abortamento voluntário. Há, sim, disposição de respeitar aquelas que passaram por tal experiência, dando-lhes o direito de escolha.

Na contramão, temos os números recentes publicados pelo Datafolha, em dezembro de 2017. Indicam que a maioria dos brasileiros, 57%, acreditam que a mulher deve ser punida e ir para a cadeia por fazer um aborto. Mas o percentual de brasileiros favoráveis à descriminalização da prática aumentou no último ano, passando de 23% para 36% –7% dos entrevistados não souberam se posicionar.

Como analisar, então, pesquisas cujos resultados parecem oscilar em função da forma de levantar a questão junto à opinião pública? Cujos resultados parecem incoerentes? Primeiro podemos concluir que pode não haver a plena compreensão do que significa vivenciar a experiência de um abortamento voluntário. Há, sim, disposição de respeitar aquelas que passaram por tal experiência, dando-lhes o direito de escolha. Trata-se de um avanço considerável para o novo normal.

Os resultados nos oferecem, outrossim, a nós, feministas em disputa pelos direitos sexuais e reprodutivos, dicas de suma relevância para enfrentar o conservadorismo e as desqualificações constantes às nossas lutas.  É possível assumir posturas mais progressistas ao mediar afirmações frias e impermeáveis com o repertório concreto da experiência da maioria que conhece mulheres que fizeram aborto.

Quando defrontados com o conhecido, a práxis, o dia-a-dia, a discussão ganha corporalidade: um rosto, uma trajetória, uma história. É recheada de afeto. E slogans, enfim, deixam de ser dísticos – significantes vazios e repetitivos – para tornarem-se vivência cotidiana.

Diante do dístico, o Brasil acessa o que não viveu, e dessa forma responde com receio e medo do novo. Medo que patriarcado e o sexismo alimentam e cultivam. Contudo, diante da vivência da proximidade, as reações extremas e a defesa de punição privativa de liberdade tendem a ser diluídas e substituídas por compreensão. Quiçá acolhimento.

Fica para as feministas uma série de lições que podem ser assim resumidas: tabus não resistem a uma análise mais fina do olhar da sociedade brasileira sobre interditados recorrentemente postos. A narrativa que mobiliza o conhecido e o real, e os traz para um debate cotidiano é capaz de enfrentar o  interdito.

O patriarcado há de se articular para reverter qualquer avanço. E nós, aqui estamos, para contrarrestá-lo. Com desmedida determinação.

Os ganhos do feminismo na construção de uma narrativa a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos, baseada nas evidências acima, capaz de transformar concepções leigas ou conservadoras e ter impacto na legislação, suscitam uma reação raivosa que aciona a falsa moral e a criminalização para nos deslegitimar. Nenhum ganho passará impune. O patriarcado há de se articular para reverter qualquer avanço. E nós, aqui estamos, para contrarrestá-lo. Com desmedida determinação.

Nesse enfrentamento, a desqualificação da luta feminista é sempre mobilizada: o famoso backlash. Termo que ainda carece de tradução precisa, mas que remete a uma experiência bem conhecida por nós, mulheres em todas as latitudes, inclusive no Brasil. São os argumentos arregimentados pelo patriarcado para transformar a luta feminista em algo sem sentido ou fundamento, demência, alheio à realidade.

Não importam as evidências: mulheres que reivindicam o controle exclusivo do seu corpo e da sua sexualidade merecem, afinal, para os conservadores e espíritos reacionários, arder na fogueira do desprezo, da humilhação e da intolerância, tal como as que fomos acusadas de bruxaria nos tempos medievais.

Mujeres reclaman la legalización del aborto el jueves por la noche.8 de diciembre de 2016. Avenida Paulista, São Paulo. (Foto: NurPhoto SIPA USA / PA. Todos os direitos reservados)

Leiamos Faludi no Brasil, agora mais do que nunca.

Em 1991, a feminista norte-americana Susan Faludi ganhou o prêmio Pulitzer com a obra “Backlash: The Undeclared War Against American Women”. À época, Faludi identificava um grande movimento de retrocesso cujo objetivo seria voltar o relógio aos anos 50. Duas premissas centrais orientariam este movimento:

a) a ideia de que o feminismo teve conquistas reais e que mulheres e homens já seriam, nos Estados Unidos dos anos 90, suficientemente iguais no que tange os papeis de gênero;

b) a noção de que o feminismo seria, portanto, um exagero, algo desnecessário cuja consequência seria cruel e desagregadora das relações íntimas além de um complicador desnecessário e contraproducente no âmbito da mobilização e desenho dos projetos políticos.

Tais premissas teriam sido, a princípio, articuladas por uma nova direita que surgira sob a presidência de Reagan nos anos 1970. Ela teria se  tornado mainstream nas décadas seguintes. Contudo, Faludi é clara ao nos lembrar que tais mensagens são repercutidas também pelo que chama de “emissários da esquerda”. A velha hostilidade da esquerda diante do feminismo seria, enfim, parte de um fenômeno maior de rearticulação do patriarcado frente às conquistas das mulheres rumo à igualdade.

Quantas vezes não fomos chamadas de exageradas, beligerantes, descontroladas?

Em tempos de Rebecas e Rosas, de Manifestos e reações agressivas, em tempos de retrocessos, o backlash se disfarça de infinitas maneiras: está no despudor do engravatado que, em Brasília, nos retira direitos aos risos, bem como no homem de esquerda, de terno de veludo, que aponta excessos dos supostos movimentos identitários, acusando-os de ignorar a luta de classes (quando sabemos que homens brancos ocupam há séculos o topo da pirâmide social).

Atenção para o refrão: precisamos estar atentas e fortes. Esquivar-nos das tentativas de manutenção do status quo. Desde as que se traduzem na desfaçatez das comissões majoritariamente masculinas de Brasília até as que se disfarçam em debate iluminista e iluminado.

As que lançam mão de Kants e de cânones do pensamento político brasileiro para que tudo permaneça igual, que os privilégios sejam garantidos, e que a luta feminista seja jogada na vala comum do exagero. Quantas vezes não fomos chamadas de exageradas, beligerantes, descontroladas?

Não temos tempo de temer a própria morte. Nem de gastar latim com aliados que pedem para ser paparicados. O mundo transforma-se sob nossa ação coletiva. Nas ruas, nos corredores dos três poderes, nas redes. Os cães hão de ladrar mais forte, porque nossas caravanas só fazem crescer, em número e no seu potencial de resistência e enfrentamento. Cantando e dançando, passam nossas caravanas coloridas, mundo afora.

Continuaremos a refinar nossas narrativas para transcender o outono que nos querem impor.

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