Aborto, questões de gênero e de saúde, por Erika Siebler Branco e Fabíola Sucasas Negrão Covas

Foto: SOS Corpo

03 de agosto, 2022 Justiça e Cidadania

(Erika Siebler Branco, Fabíola Sucasas Negrão Covas)

Advogada, Diretora de Redação da Revista JC / Promotora de Justiça, Coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, Integrante do Conselho Nacional do Ministério Público

1. Introdução

Em pleno ano de 2022, mais uma vez o Brasil se viu destinado a refletir e a discutir sobre o tema do aborto legal, impelindo juristas ao exercício de responder ou se posicionar, tecnicamente, sobre os direitos conquistados e as ameaças de retrocessos aos direitos de saúde sexual e reprodutiva das mulheres.

O caso da menina de 11 anos de idade de Santa Catarina, que esperava o direito de interromper a gravidez e foi questionada se podia “esperar mais um pouco” pela juíza do processo (1), chamou a atenção, senão – mais uma vez – pelos vieses morais e religiosos que permeiam o tema, mas principalmente pelo descortinamento de uma realidade de violência institucional na relação entre o estupro, a gravidez dele decorrente, o direito ao aborto e à dignidade da mulher.

O fato de Santa Catarina veio à tona ao mesmo tempo em que o Ministério da Saúde editou, em junho de 2022, o manual “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” (2). Sob a justificativa de cumprir o seu papel de normatizador da atenção prestada à população, teve a pretensão, segundo suas próprias palavras, de “apoiar profissionais e serviços de saúde quanto às abordagens atualizadas sobre acolhimento e atenção qualificada baseada nas melhores evidências científicas e nas estatísticas mais fidedignas em relação à temática, sempre levando em conta a defesa das vidas materna e fetal e o respeito máximo à legislação vigente no País” (3). Em uma de suas passagens, atribui a qualquer aborto a prática de crime.

Ainda que o documento queira incutir a ideia de pouca relevância ao tema e referir que o crime seria de plano afastado em razão do tempo limitado da gravidez e da impossibilidade de aguardar qualquer apuração sobre a existência ou não do delito, foi suficiente para gerar clima de insegurança jurídica e mobilizar instituições a se posicionarem, a exemplo do Ministério Público de São Paulo, que emitiu Nota de Posicionamento:

O Manual atenta que o tema tem aparente pouca relevância, mas busca, na realidade, reforçar o caráter penal da norma e incutir nas entrelinhas a persistência da conduta criminal que eventualmente legitime a adoção de providências intimidatórias e persecutórias à gestante. (4)

No mesmo período veio à tona fato envolvendo a atriz Klara Castanho, cujos direitos à intimidade e ao sigilo foram violados pela exposição da sua gravidez e da entrega do filho à adoção. A atriz acabou divulgando uma carta revelando que a gestação era fruto de violência sexual e explicou que não registrou o crime na polícia porque se sentiu envergonhada e que cumpriu todos os trâmites legais para o exercício de seus direitos.

As histórias aqui trazidas revelam não apenas a exposição e as experiências individuais de revitimização de mulheres que foram violadas sexualmente, mas uma estrutura que falha e fere direitos de gênero consagrados, escancarando os fossos do sistema ao negar ou negligenciar o atendimento digno à saúde sexual e reprodutiva de meninas e mulheres.

Legislação sobre o aborto

O direito à interrupção da gravidez é exceção no Direito brasileiro. Em regra, o aborto não é permitido, pois o direito à vida é uma garantia constitucionalmente prevista; as exceções conjugam outros direitos também constitucionalmente previstos, como o próprio direito à vida da mulher gestante ou o direito à sua dignidade, à sua saúde e aos seus direitos sexuais e reprodutivos.

A essas exceções designa-se o termo “aborto legal”, em que o próprio legislador reconheceu como lícita a prática do fato em determinadas situações, afastando-se a incidência da conduta no tipo penal.

O jurista penalista Julio Fabbrinni Mirabete chama a atenção para o fato de que tais exceções se afiguram verdadeiras causas excludentes de criminalidade (5), e não causas de ausência de culpabilidade ou de punibilidade, como equivocadamente possa se entender.

São três as hipóteses de aborto legal: o “aborto necessário” (ou “terapêutico”) indicado nas situações em que é o único meio de salvar a vida da gestante; o “aborto sentimental”, “ético” ou “humanitário”, figura doutrinária pela qual a interrupção da gravidez está autorizada quando resulta de estupro; e o “aborto eugênico”, ou “engenésico”, “eugenético” ou “piedoso”, permitido em caso de anencefalia do feto.

As figuras do aborto “necessário” e “sentimental” são direitos consagrados desde 1940 ao prevê-los, o Código Penal, como causas excludentes de criminalidade; o aborto “eugênico”, por sua vez, desde 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54).

Lia Zanotta Machado, professora titular de antropologia da Universidade de Brasília (UnB), ao retomar a história sobre a conquista desse direito no Brasil (6), lembra o fato de que, em 1830, quando vigorava o Código Criminal do Império, aderia-se ao entendimento religioso sobre o aborto como condenável, e tipificava-se o crime de realizar o aborto em outrem; não se considerava crime a conduta do autoaborto. O Código Penal Brasileiro de 1890 criminalizava não só quem provocasse ou auxiliasse o aborto, como também a mulher que o cometesse. O aborto realizado pela mulher em “defesa da honra” ou derivado de uma “loucura puerperal” era passível de absolvição ou atenuação da pena.

Em 1940, quando sobreveio o Código Penal, não se criminalizou o aborto “necessário” e “sentimental”, mas outras formas de aborto provocado, como o “aborto miserável” ou “econômico social”, praticado por motivos de dificuldades financeiras ou de prole numerosa, e o “aborto honoris causa”, feito para salvaguardar a honra no caso de uma gravidez adulterina ou outros motivos morais.

Outros termos existem na doutrina médica, como o aborto “espontâneo” ou “natural”, que é designado nos casos de problemas de saúde da gestante; e o “acidental”, que é o designado nas hipóteses de quedas, acidentes, etc.

O aborto “provocado” é o aborto criminalizado pelo Código Penal (CP), que prevê os crimes de autoaborto e consentimento no aborto (art. 124), o aborto sem consentimento da gestante (art. 125) e aborto com consentimento da gestante (art. 126).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o “abortamento” clinicamente como a interrupção da gravidez até a 22ª semana, com produto da concepção pesando menos que 500 gramas (7).

Fala-se também em “aborto inseguro”, que é o praticado em condições sanitárias precárias ou inadequadas e/ou quando realizado por pessoas não capacitadas, realidade que coloca à prova uma das faces dos índices da mortalidade materna do país. Nesse passo, Cardoso e Drezett argumentam que “a cada ano, cerca de 20 milhões de abortos são praticados no mundo em condições de risco”, tendo como resultado o fato de que “até 25% da mortalidade materna resulta diretamente do aborto inseguro, levando desnecessariamente à morte quase 67 mil mulheres a cada ano” (8).

É esse um dos argumentos que coloca em xeque a discussão sobre a liberação total do aborto, priorizando o valor do problema como uma questão de saúde pública. É também um dos pontos contidos no voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus (HC) nº 124.306, do Rio de Janeiro.

O HC foi impetrado por pacientes presos em flagrante devido à suposta prática dos crimes descritos nos artigos 126 (aborto) e 288 (formação de quadrilha) do Código Penal. Na origem, eles tiveram a liberdade provisória concedida, mas a prisão foi retomada em segundo grau com provimento de recurso interposto pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, ensejando a impetração de habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça, que concordou com a legalidade do encarceramento. No STF, o Ministro Luís Roberto Barroso concedeu a ordem.

A decisão compreendeu inconstitucional a criminalização da interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre (9) por ofensa a diversos direitos fundamentais da mulher e por não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. Nas suas palavras, o ministro ponderou que:

No caso em exame, como o Código Penal é de 1940 – data bem anterior à Constituição, que é de 1988 – e a jurisprudência do STF não admite a declaração de inconstitucionalidade de lei anterior à Constituição, a hipótese é de não recepção (i.e., de revogação parcial ou, mais tecnicamente, de derrogação) dos dispositivos apontados do Código Penal. Como consequência, em razão da não incidência do tipo penal imputado aos pacientes e corréus à interrupção voluntária da gestação realizada nos três primeiros meses, há dúvida fundada sobre a própria existência do crime, o que afasta a presença de pressuposto indispensável à decretação da prisão preventiva, nos termos da parte final do caput do art. 312 do Código de Processo Penal (CPP). (10)

Ainda que o caso tenha se restringido a situação concreta, é um precedente que garante fôlego à ampliação das hipóteses legais do abortamento em caráter de interpretação conforme à Constituição (11).

Nas últimas décadas, mais de 60 países do mundo afrouxaram as proibições sobre a autorização do aborto. Parte dessa reforma concedeu o acesso ao procedimento em determinadas situações, tal como o Brasil (para salvar a vida da gestante, em caso de estupro e anencefalia do feto); outra parte da reforma derrubou as proibições absolutas ao aborto em favor do valor do direito à autonomia reprodutiva das mulheres.

A par da luta pela descriminalização absoluta, o direito ao aborto legal é reconhecido como um direito humano fundamental protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro, e que deve ser pautado por procedimento seguro e obediente a outros direitos, como o direito à privacidade, à não discriminação, ao respeito e à proibição de tratamento cruel, desumano e degradante.

III. A jurisprudência americana e sua influência no Brasil

With sorrow—for this Court, but more, for the many millions of American women who have today lost a fundamental constitutional protection—we dissent”. (12)

A realidade da jurisprudência americana a respeito da liberação do aborto foi referenciada na decisão do Ministro Barroso em 2016 nos autos do HC 124.306/RJ. Destacou-se o caso Roe v. Wade, que tramitou na Suprema Corte dos EUA, cuja conclusão ponderou que o interesse do Estado na proteção da vida pré-natal não superava o direito fundamental da mulher realizar um aborto.

Em 24 de junho de 2022, porém, a Suprema Corte Americana anulou o caso, abandonando quase 50 anos de precedente e retirou o direito constitucional ao aborto, decisão dada no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization. Nele, questionou-se a proibição do aborto no Mississippi a partir de 15 semanas de gravidez; ao final, a Suprema Corte não só manteve a proibição no estado, como também afastou o direito constitucional ao aborto anteriormente reconhecido.

A norma restritiva no Estado de Mississippi aconteceu em 2018, influenciando outros estados a seguirem a mesma postura, movimento que fez o próprio Mississippi, mais tarde, a decidir por restringir ainda mais, proibindo o procedimento a partir de seis semanas de gravidez. Não tardou para as tensões se ampliarem perante a Corte Americana e o Estado do Mississippi aproveitou o clima para instar o Tribunal a ir além com pedido de anulação do caso Roe e Casey.

A decisão final se deu em caráter majoritário e o voto dissidente, dado por Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan chegou a indicar a relevância do precedente Roe e Casey na história da ampliação da igualdade de gênero no país, lamentando profundamente a decisão da maioria (13).

O Centro de Direitos Reprodutivos (Center for Reproductive Rights), uma organização global de direitos humanos de advogados e defensores que lutam pela garantia dos direitos reprodutivos nos Estados Unidos, alertou que as políticas de aborto e os direitos reprodutivos permanecem nas mãos de cada estado, mas temem que metade dos EUA adote postura cada vez mais restritiva e/ou proibitiva, forçando as pessoas a viajar por várias fronteiras estaduais ou, para aqueles sem condições de mobilidade, em levar a gravidez a termo, desencadeando uma emergência de saúde pública.

O Centro também anunciou que “desde a decisão da Suprema Corte, os serviços de aborto cessaram em muitos estados, como Alabama, Arkansas, Oklahoma, Mississippi, Missouri e Dakota do Sul, proibindo o aborto. Em vários outros estados, a assistência ao aborto não está sendo fornecida devido à ausência de um status legal claro sobre a sua permissão” (14).

Gabriela Rondon, pesquisadora e advogada do Instituto Anis de Bioética (15), atribui a decisão a um movimento e a um projeto político global intitulado “cruzada antiaborto”, que persiste há várias décadas e que existe para alavancar não só essa bandeira, mas outras de pautas análogas sob o apelo de discursos fundamentados na defesa da vida e da família tradicional. Ela atenta para o fato de que a Corte Americana, por ser reconhecida como um modelo de exportação de suas ideias, é capaz de influenciar o pensamento jurídico brasileiro, acreditando, por outro lado, que, dado o avanço histórico dos direitos das mulheres que tem se arraigado com mais concretude na América Latina, essa condição não será suficiente para abalar a segurança de conquistas já sedimentadas.

Não se ignora, porém, que as tensões políticas e ideológicas que dividem o País em meio às chamadas “pautas de costume” são sintomas vividos também no Brasil. Sob o título de “cruzada moral”, o sociólogo Miskolci atribui as origens dos conflitos atuais em torno dos estudos de gênero a uma aliança política com lideranças religiosas ocorrida nos idos de 2010, que teve por foco não modificar a legislação sobre o aborto, seguindo-se, após, a uma frente de retaliação a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal de 2011 que reconheceu a constitucionalidade da união homoafetiva.

Miskolci atenta ao apelo do discurso do protagonismo moral a respeito da pauta de gênero – e que tomou a agenda de lideranças políticas nos idos de 2017 – como prejudicial e de caráter distorcido aos avanços da investigação acadêmica sobre a própria temática da igualdade de gênero (16), apesar de ser um direito previsto na Constituição Federal de 1988 e em tratados internacionais abraçados pelo País.

Também não se descarta que a decisão exarada pela Corte americana possa ser utilizada como fundamento de restrição de direitos na condução de proposições legislativas, normativas técnicas e outros instrumentos que devam nortear o tema; da mesma forma no âmbito do sistema de Justiça brasileiro em meio a ações que tenham o assunto em suas causas de pedir ou pedido, a exemplo dos autos da ADPF 442, de relatoria da Ministra Rosa Weber, sobre a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, pendente de julgamento.

O estupro como causa da gravidez

O art. 7º, inciso III, da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) define violência sexual como “qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.

O estupro é uma forma de violência sexual, cujas definições do Código Penal estão insertas nos seus artigos 213 e 217-A: o estupro propriamente dito e o estupro de vulnerável. Outras formas, como o estupro coletivo ou o estupro corretivo também estão insertas na conotação principal.

O tema ganha relevância para a garantia do aborto legal, pois, como dissemos, o Código Penal não criminaliza o aborto no caso de gravidez resultante de estupro (art. 128, inciso II, do Código Penal).

O Código Penal de 1940 entendia que a previsão do crime de estupro tutelava os costumes, a moralidade sexual e o pudor público. Não se colocava a dignidade sexual da vítima nesse universo. Também previu como causa extintiva de punibilidade, até a reforma de 2005, o casamento da ofendida com o autor do crime sexual, na compreensão de que o matrimônio servia para “lavar a honra” da vítima e de sua família em detrimento da sua própria liberdade. Ou seja, o estuprador que se casasse com a vítima livrava-se da persecução penal, deixava de ser criminoso e se tornava marido e chefe da sociedade conjugal; a mulher, por sua vez, deixava de ser vítima de violência sexual e se tornava esposa.

Não se punia também o agente que praticasse estupro contra a esposa, pois o casamento presumia o consentimento para o ato sexual. O “débito conjugal” era o aval que justificava a legitimação e a naturalização da violência pois considerado direito e dever dos cônjuges de realizarem o ato sexual entre si, em nome dos deveres de “mútua assistência” e “vida em comum no domicílio conjugal” dispostos no Código Civil.

Senão por ofensa à Constituição Federal e à violação da dignidade da mulher, esse dispositivo foi revogado.

O estupro de vulnerável é outra forma de violência sexual prevista como crime na lei penal, hipótese em que o dissentimento ao ato sexual é presumido pelo legislador. Isso significa que qualquer ato sexual praticado contra pessoa menor de 14 anos é considerado estupro. Apesar disso, a realidade da cultura e do cotidiano brasileiros mostra que ainda permeia o imaginário social a naturalização do ato sexual envolvendo meninas como se fossem, na realidade, “minimulheres”.

A relação entre a gravidez precoce e o casamento infantil, por exemplo, é causa e consequência recíprocas e uma forma de naturalizar a violência sexual doméstica além de impedir o exercício do direito ao aborto legal. Segundo o Banco Mundial, são cerca de 554 mil casamentos de meninas entre 10 e 17 anos por ano no Brasil, sendo mais de 65 mil delas com idades entre 10 e 14 anos. Na maior parte dos casos, são meninas que se casam ou se unem a homens mais experientes, com melhores condições econômicas e mais velhos, uma diferença média de cinco a oito anos. Dentre os motivos já mapeados estão: a pobreza, a “lavagem” de honra da família pela perda da virgindade ou a gravidez (17).

O Anuário de Segurança Pública de 2019 apurou que em 2018 foram registrados 66.041 casos de violência sexual: 81,8% do sexo feminino, 53,8% com idade até 13 anos, 50,9% negras e 48,5% brancas, e que quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora no Brasil.

Nota Técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (18) estima que, a cada ano no Brasil, 0,26% da população sofre violência sexual, “o que indica que haja anualmente 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no País, dos quais 10% são reportados à Polícia”.

A pesquisa apurou também que a violência sexual, na maior parte das vezes, acontece dentro de casa e contra meninas: 70% são crianças e adolescentes e 50% menores de 13 anos de idade. Em relação ao perfil do agressor, apurou que 92,55% dos agressores são do sexo masculino e, dos agressores de crianças, 24,1% são os próprios pais ou padrastos e, 32,2%, amigos ou conhecidos da vítima.

A mesma Nota Técnica contém outro dado devastador, o de que, em 50% dos casos, há histórico de estupros anteriores, ou seja, de estupros recorrentes. Atenta, o documento, ao fato de que as consequências desta violência para a vítima são extremamente danosas à sua saúde psíquica, traumáticas e que afetam justamente período em que elas estão em processo de formação da autoestima.

O estupro de vulnerável pode ocorrer também contra alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.

Essa modalidade de estupro não leva em conta a violência sexual praticada mediante violência ou grave ameaça, mas circunstâncias que afetam as condições da vítima em avaliar o ato e ter condições de, criticamente, sopesar conscientemente uma decisão sobre ele. O agressor explora e se aproveita desta situação para a prática do delito, pois lhe é mais fácil garantir a execução do ato sem que a vítima resista ou que se oponha a prática da violência.

Não por outro motivo, concebe-se o estupro como manifestação abusiva de poder, uma forma de dominação calcada em marcadores de gênero. Não se trata de expressão de um tipo de sexualidade brutalizada ou desenfreada – ou praticada pelo imaginário social do agressor desenhado como “monstro” –mas uma conduta relacionada a uma cultura que objetifica os corpos femininos, que os caracteriza como servientes, patologizados e destinados ao gozo e à reprodução; e, dos masculinos, o exercício da autoafirmação e da autoridade da virilidade.

A pesquisadora Lia Zanotta Machado, em suas reflexões sobre o aborto como direito e como crime, atenta para circunstâncias como “valores familiares e conjugais que se centram na autoridade e no poder desigual de homens e mulheres, e da sexualidade (heterossexualidade e procriação obrigatória porque sagradas)” (19), na dicotomia secular que converge com a trilha da descriminalização da interrupção da gravidez.

Sintomático o fato de que, nos casos de estupro no Brasil que resultam em gravidez, estimados em 7,1% do total ou em 15% nos casos em que houve penetração vaginal e faixa etária entre 14 e 17 anos (20), o número de procedimentos de interrupção de gravidez não atende a mesma proporção.

Calcula-se que, em 2017, foram realizados 1.636 abortos legais (21) e que, dentre as vítimas adolescentes ou crianças que ficaram grávidas como consequência do estupro, apenas entre 5,0% e 5,6% realizaram aborto previsto em lei.

Drezett e Pedroso pontuam que problemas como falta de informação, acesso a serviços que realizem esse procedimento, ou mesmo a recusa dos serviços de saúde são alguns dos graves obstáculos que impedem o exercício do direito. Citando o estudo de Jorge Andalaft Neto et al denominado “Perfil do atendimento à violência sexual no Brasil”, pontuam que “entre mais de 700 municípios brasileiros se constata que quase 40% das secretarias municipais de saúde não sabem sequer responder se contam com serviço preparado para realizar o aborto em situações de violência sexual” e que os “outros 30% simplesmente declaram que não realizam o procedimento, indiferente quanto às consequências para a mulher” (22).

O Instituto Ampara, que promove curso especializado para o acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto (23), cita as seguintes barreiras encontradas para o serviço de atenção ao abortamento no Brasil: (24)

  • o isolamento geográfico e a falta de serviços em todos os estados;
  • nem todos os serviços existentes se encontram ativos;
  • muitos serviços desencorajam as pessoas que os buscam a realizar a interrupção da gestação;
  • muitos serviços, contrariando a lei, exigem boletim de ocorrência para realizar o atendimento;
  • muitas pessoas não têm acesso à informação de que podem buscar ajuda em um serviço de atenção ao abortamento previsto em lei;
  • muitas mulheres não declaram que sofreram violência sexual, especialmente quando o agressor é parceiro íntimo;
  • a veracidade do estupro muitas vezes é questionada por profissionais de saúde e mulheres são revitimizadas ao buscar um serviço que é seu direito;
  • profissionais se recusam a realizar o abortamento, fazendo uso da chamada objeção de consciência (conceito que será estudado mais à frente);
  • profissionais de atenção primária à saúde desconhecem os direitos de uma pessoa frente a uma gravidez indesejada e para quais serviços encaminhar;
  • muitas pessoas sofrem violências institucionais nos serviços, como negligência, atendimento tardio, interrogações repetidas, discriminação social e racismo;
  • muitos serviços não contam com equipe de assistência específica;
  • a maioria dos serviços impõe limite gestacional para a realização do procedimento.

A Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, prevê uma série de obrigações aos hospitais no atendimento às vítimas de violência sexual. A Lei, conhecida por “Lei do Minuto Seguinte”, estabelece que o atendimento deve ocorrer em todos os hospitais integrantes da rede do SUS, em caráter gratuito, emergencial, integral e multidisciplinar, e que deve atentar ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual.

Tais serviços compreendem: o diagnóstico e tratamento das lesões físicas no aparelho genital e nas demais áreas afetadas; amparo médico, psicológico e social imediatos; facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual; profilaxia da gravidez; profilaxia das doenças sexualmente transmissíveis (DST); coleta de material para realização do exame de HIV para posterior acompanhamento e terapia; e fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis.

Mais uma vez aqui trazemos Drezzett e Pedroso, que alertam para a necessidade de atentar para os ditames legais pertinentes: de garantir o direito ao esclarecimento da mulher sobre as alternativas frente à gestação e as possibilidades de atenção nos serviços de saúde; de fornecer à mulher informação sobre a possibilidade legal de interromper a gravidez; de que ela seja esclarecida que também tem direito a manter a gestação até o término, recebendo orientação sobre as alternativas após o nascimento, com a escolha entre manter a futura criança inserida na família, ou proceder com os mecanismos de doação (25).

Aspectos sobre saúde

No mundo, de acordo com dados publicados pelo Instituto Patrícia Galvão (26), atualmente 63 países mantêm a prática legalizada do aborto, a maioria deles por motivos muito semelhantes aos que constam na legislação brasileira.

De acordo com dados da OMS (27), no mundo, 39 mil mulheres morrem e milhões são hospitalizadas ao ano por consequência de abortos inseguros. Um estudo de pesquisadores britânicos, publicado na revista Lancet (28), analisou os números dessas ocorrências em 166 países. No período de 2015 a 2019, foram registradas cerca de 121 milhões de gestações indesejadas por ano, o que corresponde a taxa global de 64 gestações por grupos de mil mulheres com idades entre 15 e 49 anos. Desse total, 61% terminaram em aborto, algo em torno de 73 milhões de ocorrências por ano.

Ainda na mesma pesquisa, no intervalo de tempo entre 1990 e 2019, a taxa de aborto diminuiu em 43% em locais onde o procedimento é amplamente legal, excluindo China e Índia. Por outro lado, houve aumento de 12% na taxa em países que restringem o acesso ao procedimento médico.

A OMS considera que a incapacidade de acesso seguro, oportuno e respeitoso ao aborto é um grave problema de saúde pública e uma violação dos direitos humanos. Um dos relatórios da Organização revela que, de 2010 a 2014, cerca de 45% dos 55 milhões de abortos registrados no período, em todo o mundo, foram realizados em condições inseguras, sendo 97% em países em desenvolvimento. As diferenças socioeconômicas são gritantes: enquanto nos países desenvolvidos são registradas aproximadamente 30 mortes por 100 mil abortos inseguros, nos países em desenvolvimento os óbitos sobem para 220.

No Brasil, mais de um milhão de abortos induzidos ocorrem todos os anos. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (29), enquanto entre mulheres brancas a taxa é de três óbitos causados por aborto a cada 100 mil nascidos vivos, entre as negras esse número sobe para cinco. Para as que completaram até o ensino fundamental, o índice é de 8,5, quase o dobro da média geral de 4,5. O índice de aborto provocado das mulheres negras é de 3,5%, o dobro do percentual entre as brancas (1,7%). Em geral, são mulheres de até 19 anos, negras e que já têm um ou mais filhos.

De acordo com dados do DataSUS (30), plataforma do Sistema Único de Saúde (SUS), do Ministério da Saúde, no primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas pelo SUS em consequência de abortos inseguros foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei. Mais de 80 mil curetagens e/ou aspirações foram realizadas de janeiro a junho, procedimentos que são muito mais frequentes nos casos de abortos clandestinos, porque não foram realizados de maneira completa. Dados do Ministério da Saúde, coletados entre 2008 e 2017 mostram uma estimativa de 250 mil internações por ano no SUS relacionadas ao aborto induzido. Apenas em 2017, o custo destas internações foi de aproximadamente R$ 50 milhões.

Cabe ressaltar que os riscos à saúde das mulheres não se limitam ao aspecto físico, mas também às consequências emocionais da prática do aborto, seja ela legal, ilícita ou mesmo não realizada. Alguns estudos (31) apontam que, após o abortamento, as mulheres estariam mais propensas a desenvolver depressão ou transtorno do estresse pós-traumático, principalmente aquelas que relatam violência física, emocional ou abuso sexual.

A publicação “Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica” (32), editada pelo Ministério da Saúde em 2005, chama a atenção para a necessidade de observar as repercussões sociais na vida pessoal, familiar e no mercado de trabalho para as mulheres que se encontram nessa situação. E alerta sobre “complicações físicas imediatas, como hemorragias, infecções, perfurações de órgãos e infertilidade [que] se somam aos transtornos subjetivos, ao se vivenciar o ônus de uma escolha inegavelmente difícil num contexto de culpabilização e penalização do abortamento.”

Em 2021, a OMS divulgou uma atualização de sua Diretriz Consolidada sobre Atenção ao Aborto (33), segundo a qual existem três pilares que sustentam ambiente propício para fornecer assistência abrangente ao aborto de qualidade: 1) respeito aos direitos humanos, o que inclui a existência de um contexto político e jurídico favorável; 2) disponibilidade e acessibilidade da informação; e 3) um sistema de saúde que funcione bem e que apoie todas as pessoas a preços acessíveis.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) se mantém alerta e, de modo contínuo, torna transparente seu posicionamento em relação à questão. Em nota de esclarecimento publicada em 30 de junho deste ano (34), como consequência dos fatos recentes sobre o já mencionado episódio de estupro e gravidez de uma criança no Estado de Santa Catarina, o órgão emitiu seu parecer a respeito dos critérios legais para a interrupção da gestação nos casos previstos pela legislação brasileira.

Uma série de revisões realizadas em 2021 pela OMS concluiu que as regulamentações que restringem o aborto em favor da fecundidade afetam a formação das mulheres, sua participação no mercado de trabalho e as contribuições que podem dar ao crescimento da população. O status legal do aborto também pode ter consequências para a educação das crianças e sua capacidade de entrar no mercado de trabalho no futuro. Por exemplo, observou-se que um dos benefícios da legalização do aborto é que, graças ao fato de reduzir o número de gestações indesejadas e, portanto, aumentar a possibilidade de que os partos também sejam desejados, pais e mães investem mais em seus filhos, particularmente na escolarização das meninas.

Quando uma mulher não recebe cuidados para realizar um aborto seguro, acessível, oportuno e respeitoso e é estigmatizada por fazê-lo, seu bem-estar físico e mental pode ser afetado por toda a vida. A incapacidade de receber assistência ao aborto de qualidade viola vários direitos humanos de mulheres e meninas, como o direito à vida, o direito de desfrutar do mais alto padrão possível de saúde física e mental, o direito de se beneficiar do progresso científico e sua implementação, o direito de decidir livre e responsavelmente o número de filhos e o espaçamento entre nascimentos, e o direito de não sofrer tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

NOTAS

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