Aborto, um sentimento de alívio, por Debora Diniz e Giselle Carino

17 de janeiro, 2020

Uma mulher quando aborta ou reclama o direito de ser livre da prisão para abortar, se assim for sua vontade, é alguém que celebra a alegria da vida

(El País, 17/01/2020 – acesso no site de origem)

As mulheres sentem alívio ao abortar”. O sentimento é esse mesmo: alívio. A controvérsia sobre os efeitos de um aborto na saúde mental ou afetiva das mulheres é tema permanente ao debate público sobre aborto —na ausência de evidências científicas que mostrem alguma razoabilidade na criminalização do aborto, profetas da fé alardeiam que “nenhuma mulher gosta de fazer aborto” e, em um salto, transvestem religião de charlatanismo psi para oferecer diagnóstico de “aborto como um trauma”—. Ao que a ciência indica, não há trauma nem culpa, pois as mulheres vivem o aborto como uma decisão correta para suas vidas.

Há sentimentos que quando pronunciados causam desconforto à moral hegemônica. Pronunciar alívio para o aborto parece ser um deles. O estudo que identificou “relief” como o sentimento mais comum e permanente às mulheres logo após o aborto e nos cinco anos seguintes foi o mais exaustivo realizado até o momento na literatura biomédica, e foi recentemente publicado na Social Science and Medicine. Realizado nos Estados Unidos com 667 mulheres, a pesquisa as acompanhou no tempo, a fim de testar o rumor de se o aborto seria uma experiência nefasta às suas vidas. As mulheres aliviadas com o aborto são mulheres jovens, de todas as cores e etnias, que descrevem o aborto como a decisão certa para suas vidas. São mulheres comuns e muitas delas com filhos, como outros estudos já identificaram em diferentes países, como a Pesquisa Nacional do Aborto no Brasil.

Será que poderíamos também falar em “alívio” para as mulheres latino-americanas que fazem aborto? Os afetos são experiências singulares de cada pessoa, produzidos pelas individualidades em permanente tensão com as políticas da vida. No caso do aborto, os afetos das mulheres são resistências à pedagogia de gênero que, no reverso da maternidade como um destino, profecia o aborto como um trauma. A agonia entre a individualidade que rejeita o dever da gravidez pelo aborto e o patriarcado que naturaliza as normas de gênero para perseguir úteros e culpar almas pode ser mais intensa em países em que a lei penal se esmiúça às religiões, ao contrário dos Estados Unidos onde o aborto é permitido. Ainda assim, sem sabermos nomear qual seria o sentimento mais comum às mulheres latino-americanas que abortam, arriscaríamos dizer que deve estar distante dos afetos que rodeiam a fantasia religiosa do “aborto como trauma”.

Basta olhar fixamente para as centenas de milhares de meninas e mulheres que ocuparam as ruas de Buenos Aires para a votação pela descriminalização do aborto em 2018 e que prometem retornar em breve com o aceno de Alberto Fernández para alterar a lei penal. A marea verde não foi uma multidão entorpecida pelas dores de um trauma próprio ou vivido por mulheres das redes de afeto e solidariedade —era uma onda modulada pela alegria de quem afirma o direito de escolher o próprio projeto de vida—. É certo que lançamos um afeto ainda mais assustador à moral cristã para falar de aborto: a alegria. A culpa é um sentimento de sujeitos melancólicos, entristecidos pela alienação da vontade. Uma mulher quando aborta ou reclama o direito de ser livre da prisão para abortar, se assim for sua vontade, é alguém que celebra a alegria da vida.

Por que falamos em alegria como sentimento para o aborto voluntário? Porque só uma mulher convicta de sua própria existência e projeto de vida se move contra a cadeia e o inferno para abortar em condições clandestinas na América Latina. O aborto é uma necessidade de vida para as mulheres, por isso quando uma mulher aborta ela se distancia das normas de gênero como um destino para desafiá-la em uma de suas táticas de controle do corpo das mulheres —a reprodução biológica—. Arriscamos dizer que as mulheres que abortam não são levianas, tampouco alienadas das normas sociais de gênero que insistem em colonizar nossos sentimentos com culpa, vergonha ou arrependimento. Ao contrário: as mulheres que abortam vivem a experiência singular de estranhar o patriarcado, e deslocam a maternidade do campo do destino da natureza para o da norma social. Por isso, imaginamos essas mulheres com a alegria da esperança e não sendo o aborto um trauma que seja também um alívio.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown.

Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR.

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