Algumas fizeram abortos. Outras fariam se corressem risco de morte, se não tivessem condições financeiras ou fossem vítimas de violência.
(Marie Claire, 09/04/2018 – acesse no site de origem)
Ou simplesmente se não quisessem ter um filho. Assim como Marie Claire, acham que toda mulher tem o poder de escolher. Abaixo, nos unimos a mulheres como Pinky Wainer, Rebeca Mendes, Lucy Ramos, Clara Averbuck e Luciana Temer para lutar por algo que deveria ser nosso: o controle – e o futuro – do próprio corpo
Não é uma decisão fácil de tomar. Para algumas mulheres, há culpa, medo e tristeza na hora de interromper uma gravidez. “Ainda assim é preciso justificar para o mundo o motivo da decisão. O que, por si só, já é uma punição”, diz a artista plástica Pinky Wainer, 64 anos, que usou as lembranças da própria história para ilustrar a capa e o ensaio desta edição. Pinky fez um aborto aos 32 anos, quando já era mãe de três filhos, João, Rita e André, hoje com 42, 40 e 35, respectivamente. “Meu DIU falhou. Não estava no momento de ter mais filhos. O grau de hipocrisia é tão grande com esse assunto que meu ginecologista foi contra, mas me indicou quem faria. Nunca mais vou esquecer os olhares de terror em minha direção quando entrei na clínica clandestina. Uma expressão de reprovação de todos os funcionários: ‘Eu sei o que você está fazendo aqui’”, lembra a artista. Embora assuma que não tenha sido fácil, não se arrependeu do procedimento.
Em março Marie Claire convidou mulheres emblemáticas, que abortaram ou não, a posar pela causa da legalização do aborto. A campanha surge num momento delicado. O atual Congresso é o mais conservador da história brasileira desde a ditadura militar. Isso não só dificulta a discussão em torno da descriminalização da interrupção da gravidez no Brasil, como ameaça o aborto que já é considerado legal (quando há risco de morte para a mãe, a gestação é fruto de estupro ou o feto é anencéfalo). A PEC 181, que inicialmente previa estender a licença-maternidade em caso de nascimento prematuro, recebeu um adendo que poderá proibir radicalmente a prática no país. “Isso seria um grande e inaceitável retrocesso. A própria Organização dos Estados Americanos recomenda que os países revisem as legislações punitivas sobre o aborto, que deve ser considerado uma questão de saúde pública”, explica a jurista Flavia Piovesan, membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
No fim do ano passado, o caso da estudante Rebeca Mendes da Silva Leite, 31 anos, reacendeu a polêmica em torno do tema. Em novembro, ela pediu à Justiça brasileira o direito de interromper a gravidez do terceiro filho (já é mãe de Thomas, 9, e Felipe, 7) na quinta semana de gestação. Moradora do bairro de Ermelino Matarazzo, na periferia de São Paulo, trabalhava até então fazendo análise para o IBGE, com um salário de R$ 1.200 por mês. Recebia do ex-marido uma pensão de R$ 600. “Sou mãe solteira, lutei para entrar na faculdade e dar uma vida melhor aos meus filhos. Não quis abrir mão disso porque poderíamos passar fome. Por isso optei por não ter mais uma criança.” O pai, conta, foi o primeiro a dizer que não queria mais um filho.
Com a decisão tomada, começaram a pesquisar a maneira mais segura de fazê-lo. Junto com a Anis – Instituto de Bioética, ONG que milita pelos direitos reprodutivos no Brasil, entrou, então, com uma ação judicial no Superior Tribunal Federal (STF). O pedido foi negado. Com o apoio da ONG, realizou o procedimento na Colômbia, onde o aborto é legal desde 2006 para mulheres que alegam não ter condições de criar os filhos.
Se, por um lado, Rebeca foi alvo de críticas pela decisão, por outro, recebeu apoio de muitas feministas. A hashtag #PelaVidaDeRebeca virou um símbolo da causa. Em dezembro, 172 atrizes, advogadas, sociólogas e antropólogas criaram um manifesto para defendê-la. No texto, afirmaram que a intervenção, mesmo criminalizada por lei, “é uma prática corriqueira e que coloca em xeque a vida das mulheres brasileiras de todas as classes, regiões e credos. E ainda as humilha, por ser realizada na clandestinidade”. As atrizes Camila Pitanga e Eliane Giardini, a professora Heloisa Buarque de Holanda, a antropóloga Alba Zaluar e a filósofa Marcia Tiburi são algumas das que assinaram o documento. Quem também apoia a legalização é Luciana Temer, 48 anos, advogada à frente do Instituto Liberta, que comandou a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da prefeitura de São Paulo, na gestão Fernando Haddad, e ocupou o cargo de delegada da mulher em Osasco. “A prática é uma realidade no Brasil. Quem morre? A mulher pobre que faz na clandestinidade de forma precária, muitas vezes deixando sem mãe seus outros filhos.”
Números impressionantes
No mundo, a cada ano, cerca de 20 milhões de abortos são realizados de forma insegura, resultando na morte de 70 mil mulheres, sobretudo em países pobres e com legislações restritivas. No Brasil, a cada dois dias, uma mulher morre vítima de aborto inseguro e estima-se que, a cada ano, sejam feitos 1 milhão de procedimentos clandestinos. Oficialmente, sabemos que 250 mil mulheres são internadas por ano no SUS em decorrência de procedimentos malsucedidos, o que gera um custo de R$ 142 milhões devido a essas complicações.
Por fim, uma em cada cinco mulheres até 40 anos já abortaram no país, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto. Todas conhecemos alguém que já passou por esse drama. A atriz Lucy Ramos, 35, por exemplo, aderiu à campanha em função do que aconteceu com uma amiga. “Ela era muito jovem e abortou com remédio pois não tinha condições de pagar uma clínica decente. Teve sérios problemas, inclusive hemorragia. Quase morreu. Hoje, ela não pode mais ter filhos. Se o aborto fosse legal no Brasil, com certeza agora daria aos filhos o mesmo amor que dá aos sobrinhos”, conta, emocionada. Já a escritora Clara Averbuck, 38 anos, reconhece o privilégio de ter abortado em uma clínica particular, cercada de cuidados, há dez anos, ainda que na clandestinidade. “Fiquei grávida em um relacionamento que estava degringolando e já tinha uma filha, a Katharina, hoje com 14. Me vi com dois filhos, solteira e sem marido, abdicando da carreira e da independência. Precisaria voltar para a casa dos meus pais em Porto Alegre. Não poderia viver assim. Filho tem que vir quando a gente quer, tem que ser desejado para não jogarmos nossas frustrações nele. A mulher que faz um aborto não o faz porque é legal e, sim, porque não tem outra opção.” E alerta sobre o avanço da PEC 181: “Enquanto tivermos um bando de homens legislando sobre nosso corpo, sempre sairemos perdendo”.
Sobre o debate político em torno do assunto que deverá se desenrolar ao longo de 2018, a antropóloga e pesquisadora do Instituto Anis Debora Diniz, autoridade no assunto, alerta: “O tema virá com força para provocar constrangimento. É preciso cuidado para que não deixe de ser uma questão de saúde pública e direitos das mulheres”. Algo que parece óbvio, mas sempre é importante lembrar.
Lu Angelo