Estigma no Brasil e extrema direita na Argentina ameaçam direitos sexuais e reprodutivos.
Na última década, a Argentina se tornou referência regional em atendimento ao aborto com medicamentos. Mas, desde que o presidente de extrema direita Javier Milei (La Libertad Avanza) assumiu, em dezembro de 2023, o governo federal tem reduzido a distribuição de misoprostol e mifepristona, remédios usados para interromper a gestação e oferecidos de maneira gratuita pelo sistema público de saúde.
A reportagem da Gênero e Número realizou pedidos de acesso à informação a todas as 23 províncias e à Cidade Autônoma de Buenos Aires sobre o fornecimento de medicamentos usados para aborto. Porém, só recebeu respostas da capital do país e de Neuquén, na região da Patagônia.
A cidade de Buenos Aires informou à Gênero e Número que, durante 2024, o governo federal enviou aos serviços de saúde da capital pouco mais de 8 mil “combipacks”, um combo que contém um comprimido de mifepristona e quatro de misoprostol. O documento indica que o governo de Milei não enviou nenhum outro comprimido dos medicamentos em seu primeiro ano de gestão.
Já Neuquén informou que, em todo o ano de 2024, recebeu apenas 336 combos e, assim como na cidade de Buenos Aires, nenhum outro comprimidos os medicamentos usados para induzir o aborto. Em 2023, a mesma província recebeu mais de mil combos, 5,5 mil comprimidos de misoprostol para administração oral, 1,8 mil para administração vaginal e 270 de mifepristona.
Também em resposta a um pedido de acesso à informação formulado pela ELA – Equipo Latinoamericano de Justicia y Género e Anistia Internacional, o Ministério da Saúde argentino informou que não distribuiu misoprostol ou mifepristona entre abril de 2024 e fevereiro de 2025.
“Ainda temos acesso ao misoprostol e à mifepristona, mas existe uma dificuldade com medicamentos, em geral, não só os usados para interromper a gestação. Nesse momento, há cortes [orçamentários] para todos os medicamentos do centro de saúde”, conta Marcela López, psicóloga que integra uma equipe de aborto legal ambulatorial na cidade de Buenos Aires.
Aborto legal com misoprostol na Argentina
Apesar dos retrocessos, a Argentina continua oferecendo o serviço de aborto legal na atenção primária. Na cidade de Buenos Aires, a Gênero e Número visitou um CeSac (Centro de Saúde e Ação Comunitária), equivalente à UBS (Unidade Básica de Saúde) no Brasil. Localizado em um bairro periférico, vizinho a um município da Grande Buenos Aires, a unidade também atende a demanda por abortos de moradoras da província.
Lá, uma equipe multidisciplinar garante a aplicação da Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE, na sigla em espanhol). Aprovada pelo Congresso em 30 de dezembro de 2020, a legislação garante o direito ao procedimento até 14 semanas de gestação. Para os casos que já eram previstos no Código Penal desde 1921 – estupro e risco à saúde da gestante –, não há limite de idade gestacional para o acesso ao aborto.
A reportagem conversou com Lucía Quiroga, médica clínica responsável pela entrega do misoprostol e pelas orientações sobre o uso do remédio a pessoas que optam pelo método medicamentoso e decidem realizar o procedimento em casa.
Quiroga lembra que a Argentina construiu uma experiência ampla de atendimento ao aborto no nível primário, especialmente pelo trabalho de militantes feministas que acompanhavam abortos com medicamentos antes da legalização.
“Essas pessoas se arriscavam e estudavam muito. Sua experiência confirmou que o aborto ambulatorial é seguro e, na maioria dos casos, não é necessário internar a paciente”, defende a médica. “De fato, depois de 10 anos de experiência, eu também posso afirmar que as pessoas que procuram os centros de saúde para interromper uma gestação não requerem hospitalizações, nem têm complicações que demandem consultas no sistema hospitalar.”
As feministas também desenharam políticas públicas que favoreceram a construção de redes e de conhecimento sobre o direito e o acesso ao aborto, uma década antes da legalização. Em 2010, o país passou a contar com uma linha telefônica gratuita, o 0800 Salud Sexual y Reproductiva, que informava onde encontrar serviços de aborto legal em todo o território nacional.
Naquele momento, abortos legais previstos pelo Código Penal ainda eram judicializados, já que a redação do texto abria espaço para a dúvida sobre quem teria acesso ao direito. O cenário começou a mudar em 2012, quando a Suprema Corte do país decidiu que o aborto era legal para todas as vítimas de estupro, não apenas para aquelas com algum tipo de deficiência intelectual.
“Naquele momento, muitas pessoas comprometidas com a saúde da população se encontraram. Conseguimos fazer o que fizemos, porque mostramos a importância do trabalho. Viajávamos por todo o país, fazíamos reuniões com as equipes do serviço público, atualizávamos os protocolos”, lembra Dolores Fenoy, psicóloga, “feminista desde 1982”, como se define, e idealizadora da 0800 Salud Sexual y Reproductiva.
Fenoy lamenta o desmantelamento da rede de atenção primária em saúde, que defendeu e ajudou a fortalecer desde o início dos anos 2000. “Sinto dor na alma, porque a saúde pública atende as pessoas que não têm alternativas. E elas precisam ser bem atendidas, porque o acesso à saúde é um direito universal.”
López relata que, ao longo da última década, profissionais de saúde que acompanham abortos foram “perdendo medos”, mas isso está mudando.
“O que mudou mais foi o clima social. Não só para nós, mas também para as pessoas que buscam atendimento.”
A reportagem presenciou a chegada de uma mulher que queria interromper sua gestação. López contou que a paciente havia procurado um hospital público da cidade de Buenos Aires, mas tinham negado o atendimento com a justificativa de que a paciente morava na província de Buenos Aires, que pertence a outra jurisdição, e que era estrangeira.
A mulher tinha documento argentino e, de acordo com as normas vigentes, deveria ter sido atendida. No entanto, naquela mesma semana, a última de maio de 2025, Milei havia modificado por decreto a lei de imigração, restringindo o acesso de estrangeiros sem residência aos serviços de saúde. Mesmo sem estar enquadrada no caso, a mulher foi vítima da xenofobia alimentada por esse tipo de medida.
“Esse tipo de situação está começando a aparecer, e nós, que trabalhamos no serviço público há muitos anos, achamos que não voltaríamos a viver isso. Achamos que eram direitos conquistados, que ninguém poderia retirá-los”, lamenta López.
No final de outubro de 2025, a aliança eleitoral de Javier Milei conquistou os assentos que faltavam na Câmara e no Senado para promover mudanças legislativas que vinham sendo rejeitadas pelo Congresso.
Nas eleições parlamentares de metade de mandato, a frente do La Libertad Avanza obteve pouco mais de 40% dos votos em todo o país, com os quais consolidou sua vitória.
Em 2020, a província de Buenos Aires, onde moram dois de cada cinco habitantes do país, registrou 14,3 mil abortos legais. Já em 2021, quando já era possível ter acesso ao procedimento sem necessidade de explicar os motivos da decisão, 29,6 mil abortos voluntários foram registrados pelo sistema público de saúde. Em 2022 e 2023, o número de procedimentos se estabilizou em torno de 38 mil por ano.
A reportagem só teve acesso aos dados de procedimentos realizados na província de Buenos Aires. O sistema de informações do Ministério da Saúde do país está desatualizado, e os pedidos de informação feitos à pasta foram ignorados.
Criminalização oculta aborto com misoprostol
No final dos anos 1980, brasileiras descobriram um método seguro e eficaz para abortar. O misoprostol, que há 40 anos podia ser comprado em farmácias do Brasil, era indicado para o tratamento de úlceras gástricas. Contudo, ficou famoso por seu nome comercial, Cytotec, e por um de seus efeitos adversos: a interrupção de uma gestação.
Desde 1998, no entanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mantém o medicamento em uma lista de substâncias controladas, e só é possível encontrá-lo em hospitais.
Além de produzir conhecimento e popularizar o método recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para interrupções seguras da gestação desde o início dos anos 2000, o Brasil implementou também um serviço de telemedicina para oferecer, de maneira pioneira, abortos com medicamentos acompanhados à distância durante a pandemia.
Mas a criminalização e a restrição ao misoprostol têm um duplo efeito: empurram para a clandestinidade quem toma a decisão de interromper a gravidez e escondem informações sobre onde, como e quando isso acontece, já que o Brasil não registra abortos medicamentosos nem no sistema de saúde, nem fora dele.
Dados do SIH (Sistema de de Informações Hospitalares) e do SIA (Sistema de Informações Ambulatoriais) mostram apenas procedimentos de Amiu (Aspiração Manual Intrauterina) e curetagem, o método mais utilizado no Brasil, apesar de mais arriscado e complexo. De acordo com a guia de atendimento ao aborto da OMS, a curetagem provoca dor e fere os direitos humanos das pessoas que abortam, especialmente se realizada antes das 14 semanas de gestação.
Ainda assim, os hospitais públicos brasileiros registram seis vezes mais abortos por curetagem que por Amiu. Em 2024, cerca de 135 mil procedimentos foram realizados com o método considerado obsoleto pela OMS, enquanto cerca de 21 mil foram praticados com Amiu. Já o sistema ambulatorial registrou cerca de 400 procedimentos de curetagem e nenhum de Amiu.