História de capixaba que foi até o Recife para ter acesso ao procedimento expôs barreiras do atendimento no Brasil
Uma menina de 10 anos, grávida por causa de um estupro, espera atendimento no Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), no Recife. Acompanhada da mãe, ela viajou milhares de quilômetros para realizar um aborto legal porque não pôde realizar o procedimento no estado em que mora.
A história poderia ser a da menina do Espírito Santo que, após ser estuprada pelo tio e ter o aborto legal negado em dois hospitais, teve que voar até Pernambuco para realizar o procedimento. Esse caso aconteceu em 2020, e as dificuldades da criança para encontrar um serviço que a atendesse foram acompanhadas de perto pela imprensa e as redes sociais.
Só que a menina do caso que inicia este texto não é capixaba. É maranhense. E a história não é de agosto de 2020, mas de junho de 2025.
A Folha visitou o Cisam para conversar com profissionais de saúde responsáveis pelo acolhimento a criança do Espírito Santo há cinco anos para uma série de reportagens sobre o caso. Na chegada, foi informada pela equipe de que uma outra menina de 10 anos seria atendida naquele dia.
A coincidência mostra que, embora a história de 2020 tenha mudado protocolos médicos, reposicionado a estratégia feminista e impulsionado uma ofensiva conservadora contra o aborto legal, algumas coisas permanecem iguais: meninas menores de 14 anos continuam tendo que viajar para fazer o aborto legal.
Segundo especialistas, esses deslocamentos impõem dificuldades extras para as vítimas e suas famílias, que muitas vezes já se encontram em situação de vulnerabilidade social.
“Começa com os gastos que a família vai ter, uma vez que o estado muitas vezes não se responsabiliza por esse deslocamento”, afirma a obstetra Helena Paro, coordenadora do Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual) do Hospital das Clínicas da UFU (Universidade Federal de Uberlândia).
O Nuavidas recebeu dez pacientes com menos de 14 anos desde 2023. Dessas, apenas duas eram de Uberlândia. Quatro das meninas saíram de São Paulo, Vitória, Goiânia e Brasília. Outra paciente era Belo Horizonte, e as demais moravam em cidades do interior de Minas Gerais.
Já o Cisam recebeu ao menos 25 meninas dessa mesma faixa etária entre 2019 e 2025. O ano com o maior número de pacientes foi 2021, quando oito meninas foram atendidas. A unidade diz que em 2025 recebeu ao menos duas pacientes de outros estados —além da criança do Maranhão, foi acolhida uma menina de Belém.
Tanto o Nuavidas como o Cisam fazem parte de um grupo extremamente restrito de serviços que realizam o aborto legal em gestações acima de 22 semanas no Brasil. Em todo o país há apenas quatro cidades que oferecem esse atendimento: Recife, Uberlândia, São Paulo e Salvador.
A menina do Maranhão era estuprada pelo meio-irmão havia anos. A mãe, Daniela (nome fictício), que a acompanhou no hospital pernambucano, havia descoberto a gravidez algumas semanas antes, quando notou um alargamento na cintura da menina. Pediu que ela levantasse a blusa e entendeu na hora.
A família não sabia como proceder. Primeiro, pensaram em procurar um serviço clandestino de aborto. Depois, foram encaminhadas pelo Conselho Tutelar para o Hospital Materno Infantil de São Luís.
O processo demorou algumas semanas. Quando chegaram à unidade de saúde, a gestação da criança já passava das 22 semanas, e o atendimento foi recusado. O serviço, contudo, ofereceu a transferência para Pernambuco.
Daniela diz que tentou ficar no Maranhão, não queria sair de casa, mas não teve jeito. Seus outros filhos pequenos tiveram que ir para a casa da avó enquanto ela viajava com a filha. As duas nunca tinham viajado de avião.