(OABRJ, 26/03/2015) Mesmo espelhando-se nas democracias desenvolvidas sob tantos aspectos, os países latino-americanos deixam a desejar no que diz respeito à laicidade do Estado e à garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. A exceção tem sido o Uruguai, vanguarda em questões ainda delicadas para os coirmãos, como a legalização da maconha e a descriminalização do aborto. O processo histórico e político que permitiram a legislação favorável à interrupção voluntária da gravidez no Uruguai e as comparações com o atual cenário brasileiro foram apresentados em seminário desta quarta-feira, dia 25, na OAB/RJ, que contou com a participação da senadora uruguaia Constanza Moreira, uma das responsáveis pela iniciativa naquele país.
Segundo Constanza, só foi possível avançar nestes pontos, porque desde metade do século 20 o Uruguai apresenta em seu perfil político uma característica anticlerical. “Foi esta visão laica que permitiu a separação precoce da Igreja e do Estado. Para nós, latino-americanos que tanto falamos das democracias desenvolvidas, falta atenção ao que esses países pensam em relação ao aborto e a tantos outros direitos individuais. Os impedimentos filosóficos, éticos e religiosos são parte da moral privada. O Estado não tem religião. Não quer dizer que com isso passamos a recomendar o aborto às mulheres, nós estamos apenas prestando um serviço sanitário para aquelas que decidem interromper sua gravidez, considerando que esta interrupção é um direito sexual reprodutivo”, pontuou a senadora.
Trazer a polêmica deste assunto para a casa dos advogados é a forma democrática de abordar o tema, sem censuras, defendeu a presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e integrante da comissão OAB Mulher, Maíra Fernandes, que coordenou os trabalhos na primeira mesa do evento. “É muito significativo participar deste debate grávida. Simboliza exatamente o que defendo. As mulheres devem escolher quando e como querem ser mães. A minha gravidez foi desejada, mas isso em nada tem a ver com as gestações de mulheres que, por algum motivo num determinado momento, não podem ou não querem seguir adiante. Quando condenamos uma mulher a recorrer à clandestinidade, estamos condenando também toda uma família”, lamentou Maíra.
O aborto e a clandestinidade das clínicas são, hoje, as principais causas da mortalidade materna, apontou a vice-presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ, Fernanda Bianco. De acordo com Bianco, a Organização das Nações Unidas (ONU) já recomendou a revisão da lei criminalizadora do aborto no Brasil e em outros países da América Latina, assim como o Conselho Federal de Medicina, que delimita apenas a interrupção em gestações de até 12 semanas: “Mesmo assim este é um tema que não consegue espaço democrático de debate, sem hipocrisias e preconceitos. A Ordem não poderia declinar do papel de impulsionar mais discussões sobre o assunto”.
Na lei uruguaia (aprovada em 2012), algumas concessões e adaptações foram necessárias, explicou a senadora Constanza Moreira. “Tínhamos a laicidade a nosso favor, mas desenvolvemos uma verdadeira batalha para esta conquista. Primeiro, contamos com total apoio do partido Frente Ampla, do qual faço parte e que na ocasião era maioria no parlamento. A descriminalização era uma das agendas do programa de governo do presidente José Mujica. Conseguimos o apoio de juízes, médicos e da Universidade Pública, que debatiam incansavelmente o tema. Mesmo assim, na época da aprovação, tivemos que alterar trechos para garantir o apoio de alguns políticos”, detalhou.
A expressão “direito ao aborto” teve que ser substituída por interrupção voluntária da gravidez, contou a senadora. E outras medidas foram incluídas no pacote, como a restrição da interrupção em gestações de até 12 semanas, a avaliação da mulher por uma junta médica, formada por ginecologista, psicólogo e assistente social e o prazo de cinco dias, após esta consulta, para a reflexão da aceitação ou não do procedimento.
“As feministas acharam um absurdo aceitarmos a imposição de dias de reflexão. Mas ou era desse jeito ou não conseguiríamos aprovar a lei. A única luta que se perde é a que se abandona. E as grandes virtudes da política são a paciência, a persistência e a sistematização dos esforços. O conquistado é muito maior do que esses pequenos problemas. Depois de aprovada a lei, há um consenso de que a criminalização é coisa do passado e da barbárie”, defendeu.
As dificuldades históricas para a descriminalização do aborto no Brasil foram apresentadas pela integrante do coletivo Iniciativa Duas Gerações em Luta pelo Aborto Sônia Correia. Na visão de Sônia, diferentemente do que aconteceu no Uruguai, aqui a pauta não é abraçada por nenhum partido político. “O que temos são alguns parlamentares tentando discutir o tema, mas sucumbindo às primeiras ameaças”, disse.
“A força partidária é fundamental para levar esta bandeira adiante. Outro ponto que nos distingue é a necessidade da intervenção do Judiciário. Lá a discussão foi toda feita no Legislativo. Pelo caminho histórico de nossas últimas decisões, vejo como fundamental o apoio do Supremo Tribunal Federal. Temos o costume de discutir certos assuntos apenas dentro dos grupos de interesse. Mas olhando o exemplo do Uruguai, vejo como fator fundamental a discussão ampla na sociedade”, analisou.
O seminário contou, também, com a participação do diretor da Anistia Internacional (Brasil), Átila Roque; da juíza federal Jana Reis; do presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ, Bernardo Campinho; da assessora de políticas para a América Latina Beatriz Galli; e da defensora pública de São Paulo Juliana Beloqui.
O presidente da Caarj, Marcello Oliveira, o coordenador das comissões especiais da Ordem, Fábio Nogueira, e a coordenadora da Iniciativa Duas Gerações em Luta pelo Aborto no Brasil, Leila Linhares compuseram a mesa de abertura.
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