A uma semana das audiências públicas do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do aborto, Debora Diniz comenta caso de mulher que morreu após tentar interromper a gestação em casa
(Marie Claire, 26/07/2018 – acesse no site de origem)
Ingriane Barbosa morreu por um aborto clandestino e inseguro. Eu não consigo esquecer sua fotografia – uma mulher jovem e negra. Soube que tinha 30 anos, três filhos, trabalhava como babá. Não vi o talo de mamona que estava em seu útero quando morreu, mas esta é outra imagem que não consigo esquecer. Só nas histórias de aborto é que ouço falar de talo de mamona: é a matéria do desespero de mulheres como Ingriane. É como se houvesse duas fotos lado a lado – a de Ingriane viva e o talo de mamona como marcador de página ao Código Penal. Ali se lê o artigo que manda as mulheres para a prisão se fizerem um aborto.
O atestado de óbito de Ingriane descreve “septicemia/abortamento” como causa da morte. Em seu caso, não havia dúvidas: o talo de mamona estava lá como atestado da tortura que atravessou. Outras mulheres, jovens e saudáveis como Ingriane, morrem sem causa aparente e o registro é semelhante – hemorragia ou infecção generalizada. Sem o talo no útero, não sabemos por que morreram. A América Latina e o Caribe são a região do mundo que mais prende e persegue mulheres, mas também onde as taxas de aborto são mais altas. Ou seja, punimos muito e ainda assim as mulheres fazem aborto. Algumas se arriscam tanto que morrem como Ingriane.
Estamos a menos de dez dias das audiências públicas do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do aborto. A imagem de Ingriane deve estar cravada em todos nós que iremos ouvir ou falar nas audiências – é uma mulher concreta, mãe e jovem, que morreu cruelmente. Segundo o irmão, não era o primeiro aborto de Ingriane. Se for verdade, quem a matou foi o Código Penal, que ameaça as mulheres que abortam de prisão. Ele perdeu a oportunidade de prevenir esta segunda interrupção da gravidez, levando-a à morte.
Quando uma mulher aborta, algo acontece em sua vida: ou sofre violência, ou faz mau uso dos métodos de planejamento familiar, ou não suporta os efeitos colaterais de alguns métodos. Somente ouvindo sua história é que se previne um novo evento. Como é crime, as mulheres não contam a verdade aos médicos, e seguem com a situação de risco em suas vidas.
Se a lei penal persegue todas as mulheres, a mesma seletividade do sistema penal é a que agarra algumas mulheres e não outras. A criminalização impacta diferentemente as mulheres pobres: são elas que correm maiores riscos e também são elas as mais vulneráveis a uma denúncia médica ou perseguição policial. A tal ponto Ingriane deveria saber que a lei não lhe protege, que demorou a procurar socorro médico: quando chegou ao pronto-socorro, já estava em quadro grave. Eu não deixo de pensar no quanto sofreu, sozinha e em solidão. Sequer à família contou. Ingriane poderia estar viva, cuidando de seus filhos. Foi morta por um talo de mamona e por um estado que tortura as mulheres.