(ConJur | 24/10/2021 / Por Clara Tavares Cardoso, Gabriela Prates Hupsel e Luiza da Rocha Guedes)
A pobreza menstrual é definida como a falta de acesso a produtos básicos e à estrutura necessária para promover a higiene durante o período menstrual, além da desinformação acerca do tema [1]. Sua manifestação no sistema carcerário evidencia uma entre as inúmeras instituições desenhadas e operadas sob a ótica das necessidades masculinas. Tendo em vista a teoria jurídica feminista (feminist legal theory), de Catharine Mackinnon, o presente artigo pretende analisar como o problema da pobreza menstrual no Brasil corresponde à desconsideração das necessidades específicas das mulheres nos presídios e corrobora a tese de que a “neutralidade de gênero é simplesmente o padrão masculino” [2].
Segundo essa autora, a posição do Estado frente às questões de gênero demonstra uma clara falta de neutralidade [3]. Marcada pelo controle masculino das esferas de poder, a sociedade tem seus comportamentos e valores criados pelo Estado, que, por sua vez, confere legitimidade a esses. Dessa forma, o conhecimento jurídico neutro e objetivo passa a ser o conhecimento produzido pela perspectiva masculina, o que negligencia a visão das mulheres e seus interesses. O Direito, fruto de um processo legislativo dominado pelo gênero masculino, cria consequentemente as noções do patriarcado [4] sob a denominação de objetividade científica. Com efeito, a chamada teoria do Direito acaba sendo, na realidade, uma teoria masculina do Direito [5].
Para além da falta de absorventes, a pobreza menstrual está associada à carência de medicamentos, à falta de atendimento médico e até mesmo ao difícil acesso a informações sobre o assunto. Do ponto de vista da saúde, a insuficiência ou a utilização de produtos inadequados podem causar complicações físicas e mentais como alergias, infecções, inseguranças e estresse [6]. Apesar de essa questão estar presente no cenário nacional nas mais diversas esferas e condições sociais, a pobreza menstrual vem manifestando-se sobretudo em um ambiente específico: as prisões.
De início, vale considerar que a primeira unidade prisional feminina criada no Brasil foi a Penitenciária Madre Pelletier, fundada em Porto Alegre no ano de 1937 — quase 170 anos após a criação da primeira prisão do país [7]. Anteriormente, as mulheres presas cumpriam penas em presídios mistos, onde constantemente dividiam celas com homens, o que as expunha a toda sorte de violência sexual e fazia com que não recebessem o devido amparo quanto às suas necessidades menstruais [8]. Ainda que o Estado tenha passado a construir mais presídios destinados exclusivamente às mulheres, as unidades mistas continuam sendo uma realidade no Brasil. No livro “Presos que Menstruam” (2015), Maria José Diniz, assessora de Direitos Humanos da Secretaria de Segurança Pública do governo do Rio Grande do Sul, relata que os presídios mistos são presídios masculinamente mistos, uma vez que sua estrutura e gestão “neutras” são pensadas e aplicadas sem um planejamento específico para receber mulheres ou realizar uma gestão mista com elas [9]. Assim, a questão da pobreza menstrual reafirma como as instituições penais estruturam-se a partir de um viés tipicamente masculino.
Embora a saúde das pessoas privadas de liberdade esteja assegurada no ordenamento jurídico pátrio (artigo 41, VII, da LEP, c/c artigo 196 da CF), quando se trata de pessoas que menstruam, a realidade revela uma clara negligência. Diante da falta de acesso a itens menstruais ou de sua distribuição escassa, as internas frequentemente recorrem a jornais, pedaços de roupa, miolos de pão ou espumas de colchão como forma de conter o sangramento [10]. Ademais, conforme o Levantamento de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2018, há apenas 28 médicos ginecologistas trabalhando nas unidades prisionais femininas e mistas do país, de modo que existem 15 unidades da federação sem nenhum desses profissionais em seu sistema prisional [11].
Sob a ótica de MacKinnon (1991) [12], tal problema pode ser analisado a partir de uma aparente tensão: ao passo que o conceito de igualdade pressupõe uma ideia de semelhança, os conceitos de sexo e gênero pressupõem uma relação de diferença. Nessa perspectiva, a autora destaca duas formas de a lei igualar as mulheres a padrões masculinos e fomentar a igualdade material entre os gêneros. A primeira trata-se de um padrão baseado nas semelhanças (sameness standard), no qual as mulheres são medidas a partir da sua correspondência aos homens. Por outro lado, a segunda forma consiste em um padrão baseado nas diferenças (difference standard), de acordo com o qual as mulheres são comparadas com base nas suas “lacunas” em relação aos homens.
Logo, entende-se que o problema aqui levantado consiste justamente na utilização pelo Estado de padrões de semelhança para lidar com a questão da pobreza menstrual no sistema carcerário, quando essa deveria na realidade estar sujeita também a padrões de diferença. Em síntese, por possuírem necessidades distintas dos homens, as mulheres privadas de liberdade deveriam ser tratadas de acordo com suas desigualdades para que pudessem finalmente ser colocadas em um plano equidistante.
Nesse ponto, há de se ressaltar as Regras de Bangkok da Organização das Nações Unidas como um documento que tenta cumprir os padrões de diferença ao determinar diretrizes para o tratamento das internas [13]. Ratificado pelo Brasil em 2010, essa norma estipula regras relacionadas às especificidades e às necessidades do sexo feminino no sistema carcerário. Entre suas disposições, a Regra 5 estabelece que as mulheres devem ter acomodação, instalações e material de higiene específicos e a Regra 18 institui que as mulheres presas devem ter o mesmo acesso à saúde que as mulheres que não estão privadas de liberdade da mesma faixa etária. Não obstante, conforme já demonstrado anteriormente, tais garantias parecem ser desrespeitadas no cenário brasileiro.
Embora a adoção de um padrão de igualdade baseado em diferenças seja relevante, o problema da pobreza menstrual no sistema carcerário vai muito além de uma questão meramente normativa. Para que seja possível superar esses obstáculos, é preciso que tanto as garantias legais das encarceradas sejam respeitadas, quanto que mais políticas públicas de educação e assistência menstrual sejam promovidas para a população encarcerada.
Aprovado no Senado Federal em setembro, o PL 4.968/2019 implementa o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual e indica um importante avanço nessa pauta. O projeto prevê a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para estudantes do ensino fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e reclusas. O presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou a criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, porém, vetou a distribuição gratuita de absorventes femininos, sob o argumento de que tal material não consta na lista de medicamentos considerados essenciais e de que o projeto não atende ao princípio de universalidade, não sendo possível, assim, utilizar a verba destinada ao SUS. No que diz respeito ao Fundo Penitenciário Nacional, de onde seriam provenientes os recursos para reclusas e pessoas privadas de liberdade, a justificativa do presidente se baseia na inexistência de normas que prevejam o uso de recursos para essa finalidade.
Ressalta-se que o veto ainda pode ser derrubado pelo Congresso Nacional, sendo necessária para sua rejeição a maioria absoluta dos votos de deputados e senadores, ou seja, 257 votos e 41 votos, respectivamente [14]. Depois da medida tomada pelo presidente da República, 11 estados e o Distrito Federal planejam adotar ou já sancionaram leis estaduais para distribuir gratuitamente absorventes na rede de ensino [15]. Ainda que essa medida não represente a panaceia para os problemas da pobreza menstrual no Brasil, ela pode ser um passo importante para que a neutralidade de gênero seja cada vez menos um padrão simplesmente masculino.
Clara Tavares Cardoso é graduanda em Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) e integrante da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da FGV.
Gabriela Prates Hupsel é graduanda em Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) e integrante da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da FGV (LACCRIM-FGV).
Luiza da Rocha Guedes é graduanda em Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio), integrante da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da FGV (LACCRIM-FGV) e diretora de comunicação do projeto Absorvidas.
Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2021, 7h12