Em fevereiro deste ano, muitos na ONU respiraram aliviados. Numa primeira visita da ministra de Direitos Humanos às Nações Unidas, Damares Alves não criou polêmicas e falou abertamente sobre a questão de gênero, direitos das mulheres e educação sexual. Vítima de abuso sexual em sua infância, a ministra não pode ter filhos biológicos e, em diversas ocasiões, defendeu a educação sexual como forma de proteger as crianças.
(Blog Jamil Chade/UOL, 12/10/2019 – acesse no site de origem)
Vista até então como uma pessoa que poderia trazer para a agenda política seus sermões como pastora, a ministra dava indicações de que, no governo, adotaria uma postura menos radical, talvez até laica. Ao deixar Genebra, não foram poucos os que se impressionaram com a ministra, que havia deixado uma sensação de que estava ciente dos compromissos históricos do Brasil na luta pela ampliação de direitos das mulheres.
Mas aquele clima de alívio duraria pouco e, nos bastidores, o que se veria seria uma transformação sem precedentes da diplomacia nacional, recorrendo à ideologia para justificar suas decisões e atendendo a pedidos vindos diretamente de Washington.
Em março, a Comissão sobre o Estatuto da Mulher se reuniria em Nova Iorque e, de repente, delegações estrangeiras e – mesmo o diplomatas brasileiros – descobririam que o Brasil estava prestes a passar por uma mudança profunda em seu tradicional posicionamento sobre igualdade de gênero e direitos das mulheres e meninas, com impacto sobre as questões de saúde sexual e reprodutiva.
Naqueles dias, os representantes do Itamaraty na ONU, em Nova Iorque, passaram a ser procurados pelo governo dos EUA para reuniões. Nelas, os americanos insistiam em convencê-los a adotar uma nova linha. Na agenda, um posicionamento ultraconservador que vetaria referências a termos como educação e direitos sexuais e reprodutivos.
A lógica era de que todos essas referências em textos oficiais da ONU eram formas para introduzir a legalização do aborto no direito internacional, uma interpretação que não era compartilhada nem pelo Brasil e nem por dezenas de outras delegações.
O governo americano não fazia parte da Comissão e, portanto, precisava de aliados. O Brasil seria um deles.
Por dias, diplomatas brasileiros em Nova Iorque resistiram. Não atenderam aos pedidos americanos e mantiveram sua tradicional posição sobre a mulher. Afinal, a percepção que tinham tido de Damares era de que nada seria modificado.
Mas aquele mês de março também seria marcado pela visita de Jair Bolsonaro à Casa Branca. Dando-se conta de que, em Nova Iorque, os diplomatas brasileiros não se mexeriam, o Departamento de Estado norte-americano optou por fazer chegar a mensagem diretamente ao chanceler brasileiro, Ernesto Araújo.
Em Brasília, o gabinete do ministro recebeu as explicações do governo americano sobre a necessidade de que o Brasil mudasse de posição e atuasse em linha com a visão dos EUA.
E assim foi feito, para o susto de diplomatas brasileiros espalhados pelas entidades internacionais. Dias depois das consultas com Araújo, as delegações brasileiras em Nova Iorque e Washington receberiam as novas instruções.
Faltando apenas quatro horas para a adoção de um texto final da conferência sobre o fortalecimento dos direitos das mulheres, a missão do Brasil em Nova Iorque receberia o discurso e as orientações. No telegrama, uma reviravolta completa e as ordens eram radicalmente diferentes de tudo o que o Brasil representou no debate internacional por mais de 20 anos.
Assim, falando no encerramento da Comissão sobre o Estatuto da Mulher no dia 22 de março, os representantes do Itamaraty anunciaram que se dissociavam de diversos trechos de um texto que havia sido adotado por unanimidade e que reforçava os direitos das mulheres.
Ali estavam já os pilares do que seria a política externa ideológica do Brasil e, em muitos casos, atendendo a pedidos americanos. “Devo apontar que não estamos satisfeitos com o resultado”, declarou o diplomata na conferência, indicando que o texto não refletia o posicionamento do governo brasileiro. Segundo ele, o texto adotado sobre os direitos das mulheres não estaria dando uma atenção suficiente para a família.
“Estamos preocupados com a apropriação de assuntos-chave no texto que buscam fazer avançar uma agenda com a qual não concordamos”, alertou.
E, naquele texto, viria um alerta que marcaria os meses seguintes da diplomacia nacional: “o governo brasileiro não mais vai apoiar o uso inapropriado de termos e expressões dúbias que causam confusão e desentendimento”.
Ao falar, o diplomata brasileiro deixou claro que o Itamaraty se dissociava dos parágrafos da declaração que estava sendo aprovada que usavam o termo “gênero” e “sexo”, sem distinção. “Consideramos que, para esses objetivos, gênero é sinônimo de sexo e sexo é definido biologicamente como masculino e feminino”, disse.
Ele ainda “rejeitou” um parágrafo que falava da garantia de dar “acesso à serviço de saúde sexual e reprodutiva” para as mulheres. Segundo o governo, isso dava espaço para que fosse entendido como “uma promoção do aborto”.
Num texto cuidadosamente preparado, o Brasil ainda defendia que a estrutura tradicional da família fosse protegida e se recusou a aceitar um parágrafo que tratava do impacto de mudanças climáticas.
Num outro trecho, o governo vetou até mesmo um parte que dizia que uma mulher deveria receber atendimento médico, seja qual fosse seu status migratório. Para o Itamaraty, isso poderia dar espaço para “incentivar imigração ilegal” e questionava os direitos do estados de regular a entrada de estrangeiros.
A fala fere a própria legislação brasileira e os direitos de milhares de brasileiras, muitas em condição irregular, à assistência médica no exterior.
Fontes revelam que a versão original do texto sugerido por Brasília para ser lido era ainda mais radical. Mas determinados trechos acabaram sendo cortados. Ainda assim, o discurso ressoaria pelos corredores e gabinetes da diplomacia nacional como um alerta do desembarque de uma nova era.
Direito ao Corpo
Internamente, no governo, a nova postura agradou os mais conservadores e ajudava a gestão de Bolsonaro a dar sinais a seu eleitorado. Assim, a posição americana encontrou quem a apoiasse, tanto no Itamaraty como no Ministério dos Direitos Humanos.
Os debates nos gabinetes ganharam forma, inclusive com críticas a documentos que passaram a ser marcos no cenário internacional.
Um deles era a Declaração de Pequim de 1995, que consagrou as bases para o avanço dos direitos das mulheres. Internamento, no Ministério dos Direitos Humanos, vozes perdiam o constrangimento e diziam de forma aberta que aquele documento havia levado a sociedade a um erro: o de dar às mulheres a ideia de que elas tinham “direitos sobre seus corpos”.
Em maio, mais um sinal da transformação seria dado. Na Organização Mundial da Saúde, o Brasil uma vez mais atenderia um pedido do governo americano e se uniria a uma declaração em que insistiriam sobre a necessidade de rever o uso de termos como saúde sexual e reprodutiva.
Foi naquela mesma época que, nos EUA, o governo de Donald Trump iniciaria os trabalhos para indicar Andrew Bremberg para ser seu embaixador na ONU, justamente para lidar com temas de direitos humanos e saúde.
O braço direito de Trump para assuntos de política doméstica é acusado por entidades de direitos humanos de ser um “radical” conservador. Entre suas propostas está a de vetar o aborto até mesmo em casos de estupro. Ele também prometeu votar contra qualquer resolução da ONU que inclua aborto como uma possibilidade para vítimas e sobreviventes e de violência sexual.
Instruções
Poucos meses depois, em julho, novas instruções desembarcariam também em Genebra, orientando a diplomacia brasileira a modificar de forma radical seu posicionamento dos últimos 25 anos, justamente sobre esses temas no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Ali, como na Comissão sobre as Mulheres, o governo americano não tem um lugar e precisa de aliados para promover sua agenda.
Num primeiro momento, a ordem era a de vetar qualquer texto com referências a gênero, assim como o Brasil anunciou em março em Nova Iorque. Mas a ofensiva não deu resultados e o Itamaraty entendeu que ficaria isolado. Afinal, estaria desfazendo um consenso internacional de mais de 20 anos e que envolvia mais de 200 textos internacionais. Ao pedir as mudanças dos textos, a delegação tinha poucas explicações a dar. Apenas repetia para retirar gênero, incluir grupos religiosos nas discussões e eliminar qualquer trecho que pudesse ser interpretado, ainda que longe, como relacionado a aborto. Pediu até para excluir das resoluções passagem sobre a eliminação de leis discriminatórias contra mulheres, sem ter em conta que, em muitos países, mulheres ainda não tem direito à herança, nem à propriedade, nem a irem ao médico sozinhas.
O que foi primeiro um motivo de surpresa para delegações estrangeiras acabou se transformando em extrema preocupação diante da nova postura brasileira.
Ongs ultraconservadoras passaram a se sentar ao lado da delegação brasileira durante as reuniões e todos os presentes tiveram a impressão de que os diplomatas brasileiros estavam sendo “monitorados” no cumprimento das novas instruções. O constrangimento era visível.
Além disso, pela primeira vez, o Brasil não iria patrocinar duas resoluções que tradicionalmente são apresentadas: uma sobre a violência contra as mulheres e a outra sobre discriminação contra mulheres.
Aliança
Enquanto isso, na cúpula do governo, a agenda ultraconservadora ganhava um espaço inédito. Em setembro, Damares Alves viajaria para uma conferência sobre família e demografia na Hungria do ultraconservador Viktor Orban. Lá, na companhia de um dos chefes de departamentos do Itamaraty, ela anunciaria a intenção de liderar uma aliança na ONU “pró-família”.
Enquanto isso, Araújo dedicava parte de sua agenda ONU em Nova Iorque para consolidar o posicionamento do Brasil entre os países que defenderiam a liberdade religiosa – infelizmente, limitada à defesa das vítimas cristãs de ataques de outros grupos. Num certo momento, o chanceler até mesmo abandonou uma reunião sobre a Venezuela – a pior crise da história moderna da América do Sul – para prestigiar um encontro sobre religião liderado pelos EUA.
Também em setembro, mais uma vez, Brasil e EUA estariam lado a lado. Depois de uma carta enviada por Mike Pompeo, o secretário de Estado norte-americano, o Itamaraty aderiria a uma declaração conjunta com outros países em um debate acesso universal à saúde. Ali, os governos indicariam sua rejeição à ideia da criação de “novos direitos”, inclusive para as mulheres.
Ao se candidatar para mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil voltou a reforçar esses temas. Em sua promessa de campanha, o Itamaraty deu especial destaque para a defesa da família e da religião, ignorando temas como tortura, a situação das prisões ou os ataques contra a população LGBT.
O governo está convencido de que, no dia 17 de outubro, será eleito para o órgão e assumirá como uma de suas missões a defesa justamente de uma política externa com forte viés ideológico.
O governo americano, para o período entre 2020 e 2022, não faz parte do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Mas, assim como na Comissão sobre Mulheres, sabe que conta com o Brasil para assumir o desgaste da agenda ultraconservadora no centro dos debates da ONU.
Procurado, o Itamaraty não respondeu às perguntas enviadas pelo blog até a noite de sexta-feira. O espaço continua aberto aos comentários da chancelaria.
Por Jamil Chade