(APMP, 14/07/2016) Direitos sexuais e reprodutivos: violência obstétrica e Direito ao acompanhante foram temas abordados nesta edição do “As Especialistas”, projeto desenvolvido pela APMP Mulher
Fabiana Dal’Mas Rocha Paes é promotora de Justiça, atua no Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica GEVID/Norte e é uma das diretoras da APMP Mulher, da Associação Paulista do Ministério Público (APMP).
Na entrevista, realizada pela diretoria da Mulher, a promotora explica como se constitui a violência obstétrica, como os casos são tratados à luz da lei, fala das formas mais comuns de violência obstétrica, traz dados de pesquisa sobre o índice de violência obstétrica no país e como o assunto é tratado no âmbito internacional. Já no tema Direito ao acompanhante, a promotora fala da importância e do uso da lei na aplicação de casos concretos. A entrevista na íntegra poderá ser lida logo abaixo.
A diretoria da APMP Mulher é composta por pelas promotoras de Justiça Celeste Leite dos Santos, Daniela Hashimoto, Fabiana Dal’Mas Rocha Paes, Fabíola Sucasas Negrão Covas, Jaqueline Mara Lorenzetti Martinelli e Justiça Maria Gabriela Prado Manssur.
As interessadas em participarem do projeto, acima mencionado, poderão entrar em contato com a diretoria da Mulher pelo e-mail: [email protected]
DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: Violência obstétrica e Direito ao Acompanhante
APMP Mulher – Em que consiste a violência obstétrica?
Fabiana Paes– Conceitua-se a violência obstétrica como toda ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia. Este conceito engloba todos os prestadores de serviço de saúde, não apenas os médicos.
Pode-se definir também violência obstétrica como qualquer ato ou intervenção direcionada à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que recentemente deu a luz), ou ao seu bebê, praticado sem o seu consentimento explícito ou informado e em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos e preferências.[1] No âmbito internacional a legislação da Argentina Lei nº 26.485/2009 define violência obstétrica como: “Aquela exercida pelos profissionais da saúde caracterizando-se pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, através de um tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização dos processos naturais.”[2] Ressalte-se que países como a Argentina, México e outros já possuem legislação tipificando a conduta da violência obstétrica. O sistema jurídico brasileiro também já contém legislação genérica protetiva para tratar da violência obstétrica, embora não haja lei específica. Existe em trâmite no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 7.633/2014, que dispõe sobre as diretrizes e os princípios inerentes aos direitos da mulher durante a gestação, pré-parto e puerpério e da erradicação da violência obstétrica.
APMP Mulher – Como a legislação brasileira protege a mulher vítima de violência obstétrica?
Fabiana Paes– A legislação nacional brasileira contempla a proteção da mulher quanto à prática de violência obstétrica. Alguns casos de violência obstétrica podem ser considerados crimes como de homicídio, lesão corporal, omissão de socorro, crimes contra a honra, dentre outros. Também é possível a responsabilização dos profissionais que praticaram violência obstétrica, no âmbito civil, com a responsabilização por danos materiais e morais. A Constituição Federal de 1998 contém o princípio da igualdade e dispõe sobre o direito à plena assistência à saúde. Ela enuncia de forma original o dever do Estado de coibir a violência contra as mulheres, que inclui, portanto o dever de prevenir e punir a violência obstétrica.
APMP Mulher – Quais são as formas mais comuns de violência obstétrica?
Fabiana Paes– As formas mais comuns de violência são os gritos, os procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, a falta de analgesia e a negligência.[3] A violência obstétrica pode, ainda, caracterizar-se de distintas formas: recusa à admissão ao hospital (Lei nº 11.634/2007), impedimento de entrada de acompanhante (Lei nº 11.108/2005), violência psicológica (tratamento agressivo, grosseiro, zombeteiro, inclusive em razão de sua cor, etnia, raça, religião, estado civil, orientação sexual, número de filhos ou inferiorizado), impedimento de contato com o bebê, o impedimento ao aleitamento materno e a cesariana desnecessária e sem consentimento. Constituem formas de violência obstétrica: realização de episiotomia de modo indiscriminado, o uso de ocitocina sem consentimento da mulher, a manobra de Kristeller (pressão sobre a barriga da gestante para empurrar o bebê), a proibição da mulher se alimentar ou de se hidratar e obrigar a mulher a permanecer deitada.
APMP Mulher – Existe alguma pesquisa a respeito dos índices de violência obstétrica?
Fabiana Paes– Uma a cada quatro brasileiras já foram vítimas de violência obstétrica, segundo pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2010.[4] A violência obstétrica impede que o Brasil alcance os 4º e 5º Objetivos do Milênio: reduzir a mortalidade na infância e melhorar a saúde materna. O Brasil não irá atingir a meta para redução de morte materna para os patamares de 10 a 20 mortes maternas por 100.000 nascituros, conforme preconiza a organização mundial de saúde. Atualmente, existe uma estimativa de que tenhamos em torno de 50/60 mortes maternas por 100.000 nascituros.
APMP Mulher – Quais os dispositivos legais nos tratados internacionais a respeito do tema?
Fabiana Paes– O artigo 12, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher contém expressamente o seguinte:
“…os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância.”
Em 1995, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará). A Convenção destaca que a violência contra a mulher constitui grave violação aos direitos humanos e limita absoluta ou parcialmente o exercício dos demais direitos. Prevê a Convenção um importante catálogo de direitos a serem assegurados às mulheres, com a finalidade de que tenham uma vida livre de violência, não apenas no âmbito público, mas também privado. Consagra, portanto, o dever do Brasil como Estado-parte para que adote políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.[5]
As mulheres tem pleno direito à proteção no parto e de não serem vítimas de nenhuma forma de violência ou discriminação. A Convenção Belém do Pará determina em seu artigo 6º o seguinte: “O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros:a. o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação”. Além disso, o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW). Os tratados de Direitos Humanos das Mulheres inclusive a Convenção CEDAW e Convenção de Belém do Pará tem o statusconstitucional.[6]Em que pese estes importantes compromissos internacionais assinados e adotados pelo Governo brasileiro, gerando obrigações nos seus cumprimentos, muitas destas não estão sendo cumpridas a contento. Um exemplo de descumprimento diz respeito à garantia ao atendimento integral e eficiente na área da saúde, em especial no momento do parto.
APMP Mulher – Qual a importância do Comitê CEDAW quando abordamos a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos?
Fabiana Paes– A cada 4 (quatro) anos os países signatários da CEDAW necessitam apresentar um relatório periódico, submetendo-se as observações do Comitê CEDAW. O Comitê[7] elabora observações conclusivas ou recomendações. Em fevereiro de 2012, o Brasil apresentou seus resultados em Genebra, na 51ª Reunião do Comitê. Nesta ocasião foi determinado que o país apresentasse em 2014 informações sobre dois temas específicos: saúde e tráfico de mulheres, tal recomendação foi dada devido à gravidade destes problemas. Em fevereiro de 2014 o Governo Brasileiro apresentou seu relatório que foi analisado em outubro/novembro de 2014. As recomendações do Comitê colocam o Brasil numa situação delicada quanto à saúde da mulher, em especial quanto à atenção ao parto. Lamentavelmente, ainda nos mantivemos entre os países que violam os direitos das mulheres. Houve queda na posição do Brasil no IDH de gênero.[8] Os direitos sexuais e reprodutivos ainda não são plenos e a atenção à saúde da mulher deixa muito a desejar. Esta condição internacional não nos surpreende, mas ainda é muito difícil conversar e discutir sobre a violência obstétrica.
APMP Mulher – Qual a relevância da Lei nº 11.108/05 (Lei do Acompanhante) ?
Fabiana Paes – Esta lei é fundamental porque garante a presença do acompanhante desde o trabalho de parto até o pós-parto. O acompanhamento durante o parto faz com que se previna a violência obstétrica. Encontra-se também em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei 378/14 que contempla o direito de visita na rede pública e privada em todos os tipos de atendimento de saúde (ambulatorial ou hospitalar)[9]
APMP Mulher – Por que existe uma resistência em dar cumprimento a esta lei?
Fabiana Paes– A presença de um acompanhante durante o parto é muito importante. A mulher encontra-se fragilizada no momento do parto, em situação vulnerável. Existe uma evidente resistência ao cumprimento da lei, em primeiro lugar, porque a lei não prevê expressamente uma pena; em segundo, ocorre uma má interpretação da lei; em terceiro, existe também um problema estrutural: várias maternidades ainda não têm um espaço físico adequado. Por fim, há um problema cultural: o desrespeito à autonomia da mulher, muitos interpretam o parto como um ato médico e que deve permanecer sem a participação e respeito à autonomia da mulher.
APMP Mulher – A Lei nº 11.108/05 (Lei do Acompanhante) poderia ser aprimorada? Em quais aspectos?
Fabiana Paes – São necessárias algumas alterações. A legislação fala nos “serviços de saúde do SUS e da rede conveniada”. Ficaria mais claro se falasse “hospitais da rede pública e privada”. Sugiro também que contivesse num parágrafo específico que o descumprimento dessa lei acarretaria a aplicação de multa, advertência e até intervenção, interdição ou o cancelamento de licença do funcionamento do estabelecimento, ficaria mais claro qual seria a punição em caso de descumprimento. Toda gestante tem direito ao acompanhante e esse direito pode ser garantido diretamente no hospital – ela tem o direito de exigir isso.[10]
APMP Mulher – Existe algum caso internacional de violação ao direito ao pleno acesso à saúde no parto?
Fabiana Paes– O caso Alyne Pimentel é o mais emblemático quanto à violação ao direito a um parto saudável e pleno acesso à saúde,. Aline em 14 de novembro de 2002, com apenas 28 anos, 6 meses de gestação, buscou atendimento médico na rede pública de saúde de Belford Roxo, Rio de Janeiro, mesmo registrando fortes dores ela foi liberada após administração de analgésicos. Sem melhora, retornou ao hospital, onde se constatou a morte do bebê. Submetida, após horas de espera, a uma cirurgia para a retirada placenta, o quadro se agravou e ela precisou ser transferida para um hospital em Nova Iguaçu, operação realizada, com grande demora e com omissão dos profissionais e do sistema brasileiro de saúde. Nele, devido à falta de atendimento, no corredor do hospital, Alyne faleceu em decorrência de hemorragia digestiva. O caso foi levado ao conhecimento do Comitê CEDAW da ONU em 2011 e o Brasil condenado ao pagamento de indenização por negligência no serviço público de saúde. Foi a primeira condenação internacional do Brasil em razão de morte materna[11].
APMP Mulher – Quais são as agendas essenciais para combater a violência obstétrica?
Fabiana Paes– Entendo que seja imprescindível, em primeiro lugar admitirmos que este tipo de violência existe e atinge milhares de mulheres em todo mundo, no Brasil inclusive. A partir desta percepção da violência de gênero, gerar um amplo debate com participação da sociedade, dos profissionais de saúde, da academia, do sistema de justiça; a afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos com um olhar interseccional (não apenas de gênero, mas também étnico racial e de classe); a efetivação dos direitos contidos na Constituição Federal, na Convenção CEDAW e na Convenção Belém do Pará; a sensibilização e formação dos profissionais de saúde e do direito; a garantia ao direito ao acompanhante à gestante; a garantia ao direito à informação; a garantia ao acesso pleno à saúde e o incentivo às boas práticas obstétricas, fundamentadas em evidências científicas. O panorama vem lentamente mudando, mas estamos longe de alcançar os patamares aceitáveis. O Brasil não vai atingir os Objetivos do Milênio quanto àredução de morte materna. Entendo que o alto índice de mortes maternas é um indicativo de que nós temos um longo caminho a seguir para a efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Fabiana Dal’Mas Rocha Paes Promotora de Justiça do GEVID/Norte, Diretora da APMP/Mulher, Mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela UNSW, Sydney, Austrália, Doutoranda em Direito pela Universidade de Buenos Aires, Argentina
[1]Fundação Perseu Abramo, e Sesc, Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado,2010, em http://novo.fpabramo.org.br/content/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou, em 26 de junho de 2015.
[2]Artículo 6, e) Violencia obstétrica: aquella que ejerce el personal de salud sobre el cuerpo y los procesos reproductivos de las mujeres, expresada en un trato deshumanizado, un abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales, de conformidad con la Ley 25.929 (tradução livre da autora).LEY DE PROTECCION INTEGRAL A LAS MUJERES, Ley nº 26.485, Ley de protección integral para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra las mujeres en los ámbitos en que desarrollen sus relaciones interpersonales, Sancionada: Marzo 11 de 2009, Promulgada de Hecho: Abril 1 de 2009.
[3]Fundação Perseu Abramo, e Sesc, Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado,2010, em http://novo.fpabramo.org.br/content/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou, em 26 de junho de 2015.
[4]Fundação Perseu Abramo, e Sesc, Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado,2010, em http://novo.fpabramo.org.br/content/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou, em 26 de junho de 2015.
[5]PIOVESAN, Flavia, Violência contra a Mulher, O Globo.
[6]PIMENTEL, Silvia, PANDJIARJIAN, Valéria e PIOVESAN, Flavia, Saneamento da Ordem Jurídica uma Perspectiva Feminista.
[7]Este Comitê tem como um de seus membros a destacada Professora a brasileira Dra. Silvia Pimentel.
[8]Monitoramento permanente CEDAW, http://monitoramentocedaw.com.br/wp-content/uploads/2013/08/Publi-Cedaw-3-Parte-1-OK.pdf
[9]http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/03/30/vai-a-camara-projeto-que-transforma-em-lei-o-direito-do-paciente-a-acompanhante, em 15 de junho de 2016.
[10]LAZZARI, Thais, entrevista concedida pela autora PAES, Fabiana, Revista Época.
[11]PAES, Fabiana, Violência Obstétrica: Um novo termo para uma prática antiga?, em http://agenciapatriciagalvao.org.br/direitos-sexuais-e-reprodutivos/violencia-obstetrica-um-novo-termo-para-uma-pratica-antiga-por-fabiana-dalmas-rocha-paes/
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