Quando a folia do carnaval começava a sacudir as ruas do Brasil, ainda no sábado dia 10 de fevereiro, Jéssica Monteiro, 24 anos, foi presa em São Paulo, grávida de nove meses, acusada de tráfico de drogas por portar 90 gramas de maconha. No dia seguinte entrou em trabalho de parto e foi levada às pressas ao hospital para dar à luz seu bebê, mas dois dias depois estava de volta ao cárcere, acomodada em um colchão no chão, dando de mamar ao filho. Mesmo sendo ré primária, teve sua prisão preventiva mantida, sob a justificativa de que ela representava “alta periculosidade”. O caso ganha ainda mais relevo se lembrarmos que Adriana Ancelmo, esposa de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro, e condenada em primeira instância a 18 anos de prisão por se beneficiar de dinheiro desviado dos cofres públicos, teve a prisão domiciliar concedida para cuidar do filho de 12 anos, em março de 2017. Mas voltando à Jéssica, na última sexta-feira, 16-2-2018, ela teve o pedido de prisão domiciliar aceito pela justiça.
(Instituto Humanitas Unisinos, 21/02/2018 – acesse no site de origem)
O caso de Jéssica Monteiro é bastante ilustrativo sobre a realidade das mulheres presas no país. “No Brasil o uso da prisão preventiva é abusivo, de modo que a estimativa é de que 40% dos presos no sistema penitenciário nacional estão encarcerados por motivo de medida preventiva”, explica Nathalie Fragoso, em entrevista por telefone, à IHU On-Line. “Além disso, o cárcere privado no Brasil é caracterizado por falta de condições de higiene, por alimentação inadequada, sem condições de fazer o pré-natal, sem locais adequados ao aleitamento; o quadro é cruel”, complementa.
Nathalie é uma das advogadas que moveu uma ação de habeas corpus coletivo para mulheres presas preventivamente e que são mães ou gestantes, que foi a julgamento na tarde de ontem no Supremo Tribunal Federal – STF. “Houve uma mudança no Código de Processo Penal, promovida pelo Marco Legal da Primeira Infância estabelecendo duas novas hipóteses, determinando que mulheres gestantes ou mães de crianças menores de 12 anos pudessem, em vez de prisão preventiva, aguardar o julgamento em prisão domiciliar”, justifica a proposição.
Nathalie Fragoso é advogada e integrante do Coletivo de Advocacia e Direitos Humanos – CADHu.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Gostaria que detalhasse o pedido de habeas corpus coletivo. A quem ele se destina? E como as mulheres contempladas por esse habeas corpus cumpririam suas penas?
Nathalie Fragoso – O pedido de habeas corpus tem como paciente todas as mulheres presas preventivamente no sistema penitenciário nacional que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos. Ou seja, não fala ainda de cumprimento de pena, trata-se de mulheres presumidas inocentes, mulheres presas cautelarmente.
Veja, a prisão preventiva é aquela decretada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, em tese utilizada quando há razão de ameaças a testemunhas em que o juiz precisa tomar providência para assegurar os fins do processo. Acontece que no Brasil o uso da prisão preventiva é abusivo, de modo que a estimativa é de que 40% dos presos no sistema penitenciário nacional estão encarcerados por motivo de medida preventiva. É justamente isso que contestamos, isto é, como manter em prisão preventiva mulheres em situação degradante. Além disso, o cárcere privado no Brasil é caracterizado por falta de condições de higiene, por alimentação inadequada, sem condições de fazer o pré-natal, sem locais adequados ao aleitamento; o quadro é cruel.
IHU On-Line – Como o caso de Jéssica Monteiro, de 24 anos, presa recentemente com 90 gramas de maconha, ilustra a forma pela qual o Brasil trata a população mais empobrecida e, historicamente, marginalizada?
Nathalie Fragoso – As mulheres que caracterizam quase a totalidade do cárcere brasileiro são as em situação de vulnerabilidade econômica e social, que são mais facilmente capturáveis pelo controle penal. É justamente para essas mulheres, que percebemos acompanhando alguns casos, que há possibilidade da substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar quando há abuso da prisão preventiva.
IHU On-Line – E no caso das mulheres já condenadas, como elas ficam? Por que elas não são contempladas no atual pedido de habeas corpus?
Nathalie Fragoso – De fato, o pedido de habeas corpus só se refere à prisão preventiva. Houve uma mudança no Código de Processo Penal, promovida pelo Marco Legal da Primeira Infância estabelecendo duas novas hipóteses, determinando que mulheres gestantes ou mães de crianças menores de 12 anos pudessem, em vez de prisão preventiva, aguardar o julgamento em prisão domiciliar. Da perspectiva do Coletivo de Advocacia e Direitos Humanos – CADHu, isso deveria ser estendido a todas as mulheres condenadas, porque a situação degradante do cárcere não muda, então é um direito que deve ser preservado a ambas. O ponto é que o pedido concentrado na prisão preventiva tem a ver com o fato de já existirem dispositivos legais que permitem que essas mulheres sejam colocadas de pronto em liberdade ou prisão domiciliar. É preciso, sim, questionar a situação das mulheres condenadas, porque são penas humilhantes e em situação degradante, ou seja, pode-se anuir esse mesmo direito a mulheres em situação de prisão no geral.
IHU On-Line – O caso mais notório de mãe que buscou cumprir a pena em domicílio em decorrência da necessidade de cuidado dos filhos é Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. O que esse caso, tomado em paralelo com tantas outras mulheres que não conseguem esse benefício, revela sobre a Justiça no Brasil?
Nathalie Fragoso – Esse caso, inclusive, consta como uma das razões da indignação que nos levou a ir em busca dos direitos de outras mulheres. Ele revela a assimetria. Nós não queremos Adriana Ancelmo na cadeia, nós queremos que mais mulheres saiam. A assimetria na justiça, a falta de condições materiais para recorrer aos próprios direitos e ao acesso à informação leva uma série de mulheres a esse tipo de situação. Essas diferenças são legitimadas pelo direito, pois, afinal de contas, deveria haver um tratamento isonômico, mas infelizmente a gestão judicial ocorre de maneira desigual.
IHU On-Line – Como entender que uma mulher grávida, promotora pública, peça a prisão de outra mulher em trabalho de parto?
Nathalie Fragoso – Independentemente de gênero, o fato é triste porque mesmo uma mulher nessa situação [grávida] não foi capaz de se colocar em posição de empatia com a jovem levada à prisão. Mas, independentemente de gênero e da autoridade que pede a prisão, consideramos que é igualmente insensível, inadmissível do ponto de vista da pessoa presa, porque uma mulher gestante levada ao cárcere passa por uma situação de risco, à medida que é privada do acesso à saúde, ao pré-natal, à atenção ao parto adequada, à alimentação adequada, à amamentação etc. O caso de Jéssica é emblemático porque ela é levada à prisão, depois precisa ser removida ao hospital, para dois dias depois ser levada de volta à carceragem em um ambiente absolutamente precário, apertado, sem condições de abrigar nem a mãe nem a criança. Essa situação é de tal forma eloquente que o exemplo não deixa dúvidas sobre a inadequação da prisão nesse caso. É claro que é grave e é triste ver que nem nesses casos as condições inadequadas a que essas mulheres são submetidas são levadas em consideração.
IHU On-Line – A proposta de habeas corpus coletivo é elogiada pela juíza da 2ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, Patrícia Fraga. Entretanto, ela lembra que algumas mulheres não terão uma família que as acolha e, por isso, defende ação e acompanhamento do Estado. Como você imagina que se deva proceder nesses casos?
Nathalie Fragoso – É uma situação realmente difícil e a única ressalva que fazemos é que devemos discutir esses casos com cuidado e que se tente ver a vulnerabilidade de cada caso. A preocupação que nós temos é a de que a situação de vulnerabilidade de uma mulher não pode ser motivo de punição, de tratamento mais grave, muito menos de ação ou manutenção da prisão. Isto é, a mulher em situação de vulnerabilidade que não tem domicílio ou não tem uma família para onde voltar ou ser acolhida, não deve ter um julgamento mais rigoroso que aquela em situação diferente. Caso contrário, essa vítima estará sendo sobrejulgada, sobrepunida, o que seria mais grave, justamente, em função de uma vulnerabilidade de uma privação que ela tem. Então não há uma resposta pronta para esses casos e é preciso que as autoridades competentes olhem para isso com cuidado, de modo que o apelo que fazemos é o de que a vulnerabilidade não é crime, não pode ser punida, ao contrário, vulnerabilidade tem que ser sanada.
IHU On-Line – O que o julgamento do Supremo Tribunal Federal – STF desta tarde (ontem) pode significar para a garantia dos direitos civis se a medida do habeas corpus coletivo for aceita ou se for negada?
Nathalie Fragoso – Em um tempo de retrocesso, de agravamento das condições dos direitos civis, uma decisão favorável do STF significaria o cumprimento da lei e, enfim, um passo na superação do caos do sistema penitenciário brasileiro. Uma decisão desfavorável, por outro lado, faria persistir as ilegalidades históricas cada vez mais graves que vemos nesse ambiente.
IHU On-Line – É possível detalhar a situação das mulheres-mães encarceradas no Brasil hoje?
Nathalie Fragoso – Uma das integrantes do CADHu é Bruna Angotti e ela participou da pesquisa que resultou na publicação Dar à luz na sombra, financiada pelo Ministério da Justiça, tendo visitado cárceres no sistema penitenciário do Brasil inteiro. Foram dessas análises e avaliações críticas que nós buscamos e recolhemos pontos que integram o habeas corpus. Então há pesquisas, dados reproduzidos e detalhamentos sobre as violações que as mulheres hoje passam.
Por outro lado, ainda carecemos de dados atualizados sobre quem são exatamente essas mulheres, onde estão. O Departamento Penitenciário Nacional – Depen produziu alguns desses dados e enviou ao ministro Ricardo Lewandowski, por sua solicitação, no âmbito do habeas corpus. É preciso ainda avaliar essas informações e verificar quão adequadas e exaustivas são. Mas, ainda há um desafio a ser superado no que diz respeito à transparência do sistema penitenciário nacional.