Por que a Justiça deve conceder às vítimas da epidemia o direito de escolher pela interrupção da gestação
(Época, 07/12/2016 – acesse no site de origem)
É bom que fique claro: as grávidas infectadas pelo vírus zika não são vítimas de um mosquito. Elas são vítimas da reiterada ausência do Estado. A responsabilidade pela tragédia imposta a milhares de brasileiras não pode ser creditada à natureza ou ao destino. Nada mais previsível no Brasil do que a proliferação do Aedes aegypti a cada verão. Nada mais constante do que a inconstância das ações governamentais para combatê-lo.
Falta dinheiro, falta coordenação, falta inteligência, falta vergonha na cara. A corda, como sempre, arrebenta do lado mais fraco. Desta vez, ela arrebentou na extremidade que já era só fiapos: o das mulheres pobres, negras e, em sua maioria, nordestinas.
O Estado falhou ao não impedir que o mosquito virasse uma ameaça onipresente. Falhou ao não diagnosticar a infecção precocemente. Falhou ao não garantir assistência adequada durante uma gravidez repleta de dor e incertezas. Falhou e continua falhando ao não oferecer condições para que as crianças nascidas com microcefalia e outros graves danos tenham um desenvolvimento minimamente satisfatório. Falhou ao não oferecer apoio assistencial para que essas mães possam continuar a trabalhar e a viver como todo cidadão livre.
A sociedade brasileira falhou, substancialmente, ao não garantir o direito de escolha a milhares de mulheres e adolescentes. É algo que não cabe ao Poder Executivo num país que aceita a interrupção legal da gestação em apenas três situações: estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia. Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) dar às grávidas infectadas pelo zika um sinal de que elas não estão sozinhas.
Está na pauta dos ministros o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5581) que inclui o pedido de interrupção da gravidez em casos de infecção pelo zika. O documento foi levado à Corte pela Associação dos Defensores Públicos (Anadep), que denuncia a falta de atenção às famílias atingidas. O principal argumento da entidade ao defender a possibilidade de interrupção da gravidez é o grave sofrimento emocional das grávidas atingidas por uma epidemia sem precedentes.
Um ponto importante: não é o diagnóstico de alterações no feto que fundamenta o pedido dos defensores públicos – e sim o abalo da saúde física e mental de mulheres largadas à própria sorte. Não se trata, portanto, de uma tentativa de eliminar do planeta pessoas nascidas com necessidades especiais.
Estamos vivendo uma situação ímpar na saúde pública. Diante disso, é preciso ampliar direitos tradicionalmente negados às brasileiras. A decisão particular da mulher (seja pelo prosseguimento da gravidez ou por sua interrupção) precisa ser respeitada pelo Estado e pela sociedade.
Não pensem que as vítimas da omissão do Estado contarão com creches especializadas ou empregadas domésticas para ajudar no cuidado dos filhos com múltiplas dependências. O destino dessas mães – muitas vezes ainda meninas – foi terrivelmente traçado. Não pela natureza, repito, mas pelo Estado ausente.
Em um parecer encaminhado ao STF, relatores especiais das Nações Unidas afirmam que a negação do serviço de aborto nesses casos pode ser caracterizada como tortura. Segundo os autores, o sofrimento agudo equivale a tratamento cruel, desumano ou degradante.
Os relatos trazidos pela imprensa e pelos especialistas que conheceram as vítimas de perto confirmam a tragédia que elas têm vivido. O STF precisa dar a essas mulheres e meninas um sinal de que o Estado existe.
Cristiane Segatto