Em encontro com a sociedade civil no Rio de Janeiro, o representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), Jaime Nadal, alertou para falhas nos serviços de saúde sexual e reprodutiva do Brasil, que protegeram a população do zika de ‘forma parcial’.
Para a ONU Mulheres, resposta à doença deve incluir iniciativas a longo prazo, que prestem assistência contínua às crianças que nasceram com a síndrome congênita provocada.
(ONU BR, 28/03/2017 – acesse no site de origem)
O surto de zika — e de microcefalia — expôs “falências” na garantia dos direitos das mulheres no Brasil. A conclusão é do representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) para o país, Jaime Nadal, que participou nesta semana (27) de um encontro no Rio de Janeiro para debater os desafios a longo prazo da epidemia da arbovirose. Evento foi promovido em parceria com a ONU Mulheres e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
De 8 de novembro de 2015 até o final de 2016, pouco mais de 10,2 mil casos de alterações no crescimento e desenvolvimento de recém-nascidos foram notificados às autoridades brasileiras como possivelmente associados ao zika.
Segundo o Ministério da Saúde, 2.205 ocorrências foram confirmadas como vinculadas à arbovirose ou outras infecções, e 2.829 permanecem sob investigação. Do total, mais da metade dos episódios já foram descartados, ou seja, não foram considerados síndromes congênitas do zika.
“O zika acontece num contexto histórico com uma série de determinantes sociais muito claramente definidos. Afeta principalmente a periferia, afeta principalmente as mulheres pardas, negras e jovens”, afirmou Nadal na reunião da chamada Sala de Situação sobre Zika, que teve a participação da sociedade civil, do governo e de outros Estados-membros da ONU, como a Holanda. Encontro aconteceu no Centro de Informação da ONU para o Brasil (UNIC Rio).
Uma análise de 5.194 casos suspeitos da síndrome congênita do zika — registrados pelo Ministério da Saúde no período de 4 de janeiro de 2015 a 27 de fevereiro de 2016 — revelou que 71,3% das mães dessas crianças tinham de 15 a 29 anos. Quase 77% das mães se declararam pardas e 7,8% se disseram negras. Quase 49% eram solteiras no momento do parto e outras 28,4% viviam em união estável.
O levantamento desagregado é da própria pasta federal e foi apresentado no evento por Carlos Albuquerque de Melo, consultor nacional de arboviroses e de manejo integrado de vetores da OPAS.
Segundo ele, enquanto os primeiros surtos de alterações congênitas afetaram sobretudo Pernambuco, Bahia e alguns estados do Sudeste, agora novos e mais numerosos casos — ainda em sua maioria sob investigação — têm sido registrados em outras partes do país, como no Pará e na região Sul.
“O sistema (de saúde) tem muito a melhorar, particularmente na atenção básica e também em termos de saúde sexual e reprodutiva. Tem ficado muito evidente que as mulheres não tinham um aconselhamento adequado durante o surto epidêmico”, ressaltou o representante do UNFPA.
“Muitas mulheres queriam adiar a gravidez ou não sabiam muito bem como fazer para se prevenir do zika já durante a gravidez. Ou sabiam do mosquito e usavam repelente, mas não sabiam da transmissão sexual”, explicou Nadal, para quem a proteção da população foi apenas “parcial” devido a essas lacunas.
“As mulheres têm que ser empoderadas, as comunidades têm que ser empoderadas”, completou o dirigente, destacando a importância de iniciativas a nível comunitário que difundem informação sobre saúde sexual e reprodutiva.
Mãe relata experiência de ‘muita luta’ para cuidar do filho com microcefalia
Entre os participantes do encontro estava Vanessa Caldas, mãe do Dimitri, de um ano e quatro meses. O menino nasceu com microcefalia, mas o problema de saúde só foi descoberto pelos pais após o parto, quando Vanessa leu na ficha de registro cartório o nome da malformação.
Ao longo de toda a gestação, que foi monitorada pela família com todos os exames recomendados, médicos não lhe informaram sobre a possibilidade de que seu filho apresentasse a síndrome neurológica — apesar de Vanessa ter apresentado sintomas de zika, diagnosticados como uma “dengue leve”, e de outros clínicos terem identificado um tamanho da cabeça do bebê “menor que o padrão”.
“A experiência tem sido de muita luta”, contou Vanessa, que lembrou que, até os oito meses de idade, Dimitri tinha muitas crises convulsivas. Infecções associadas a outras complicações de saúde provocavam até 30 convulsões por dia. Para dar assistência à criança, ela se viu forçada a contratar um plano de saúde, pois, na rede pública, o agendamento de consultas é muito demorado e a oferta de serviços especializados, como neurologia, é precária.
Mas nem em instituições particulares, ela recebe o apoio necessário, pois seguradoras limitam o número de consultas com terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e fonoaudiólogos. Para garantir que Dimitri tenha acesso a esses cuidados, ela se divide entre o Estado e a iniciativa privada.
Além das despesas médicas, há também os custos com alimentos fortificados — como uma variedade de leite em pó cuja lata para duas semanas custa 90 reais —, espessadores — substâncias para dar consistência a líquidos, uma vez que o filho não consegue engolir alimentos sólidos — e outras necessidades — um óculos especial para crianças com deficiências visuais associadas à microcefalia tem preço de cerca de 800 reais.
Durante o primeiro ano de vida do filho, a moça, que tem 34 anos e é formada em Geografia, recebeu diagnósticos desanimadores de médicos. Profissionais chegaram a afirmar que Dimitri “não teria expressão facial alguma”.
“Às vezes, um diagnóstico muito impactante faz com que a mãe ou a família pensem ‘bom, já que é isso, então, para que correr atrás, para que ter tanto trabalho de levar para a terapia, já que (supostamente) não vai andar, não vai falar?’”, afirma Vanessa.
“Pode (até) ser que isso aconteça, mas você tem que dar o estímulo, as ferramentas, os profissionais necessários para que ele consiga fazer um trabalho terapêutico e ver se a criança vai conseguir responder àquele tratamento ou não”, acrescentou.
A rotina de Vanessa e Dimitri é intensa. Todos os dias da semana, ela leva o filho a algum centro de reabilitação com a sogra, para que ele possa se desenvolver da melhor maneira possível. Morando no Pechincha, em Jacarepaguá, a mãe se desloca até a Tijuca, Vila Isabel e outros bairros da cidade para que Dimitri seja atendido.
“Eu não posso trabalhar e, mesmo que eu trabalhasse, eu teria que terceirizar o que eu faço. O que eu receberia no meu trabalho, eu teria que usar para pagar uma babá”, explicou Vanessa, que pensava em fazer doutorado na sua área de formação antes de decidir ter um filho com o marido.
Também presente no encontro, a representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, enfatizou que as políticas públicas do Brasil vejam o zika como um problema de saúde a longo prazo. “Essa criança que nasceu com síndrome (congênita) vai requerer serviços sociais, de educação, de saúde a vida inteira”, disse.
“A mulher que é mãe da criança não pode estar sozinha, não é só sua responsabilidade. É uma responsabilidade dela, do parceiro, da família, da comunidade e sobretudo, do Estado, para garantir que a vida dela (da mulher) continue também nos aspectos do trabalho, da liderança e da própria saúde”, concluiu Nadine.