(ConJur, 07/12/2015) Em distintas partes do mundo, inclusive no Brasil, muitas mulheres sofrem abusos, maus tratos e violência física e psicológica nas instituições de saúde, em especial no momento do parto, o que é muito preocupante. Por isso, 25 de novembro é lembrado como o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres.
Com efeito, desde a década de 1950 há debates a respeito do tratamento recebido pela mulher durante o parto. Quando existe a má qualidade da assistência à saúde no parto, violando direitos fundamentais, surge a prática da violência obstétrica. O termo violência obstétrica causa muita polêmica, sendo, através dos anos, utilizadas outras expressões para simbolizar o mesmo fenômeno, tentando diluir a força deste termo, quais sejam, direitos humanos no parto, prevenção e eliminação de abusos no parto, maus-tratos no parto ou violência no parto. Independentemente do termo utilizado é preciso dar visibilidade a esta forma de violência contra a mulher.
A questão mais delicada quanto à violência obstétrica consiste no fato de que muitas vezes as mulheres, vítimas desta forma de violência, não percebem a sua prática, pois, por uma questão cultural, o parto ainda é visto como um momento de “dor necessário”. Em outras situações, aquelas que percebem, optam pelo silêncio, mas afinal em que consiste a violência obstétrica?
Entende-se por violência obstétrica toda ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia. Este conceito engloba todos os prestadores de serviço de saúde, não apenas os médicos.
Pode-se definir também violência obstétrica como qualquer ato ou intervenção direcionada à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que recentemente deu a luz), ou ao seu bebê, praticado sem o seu consentimento explícito ou informado e em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos e preferências.
No âmbito internacional, a legislação da Argentina, Lei 26.485/2009, define violência obstétrica como: “aquela exercida pelos profissionais da saúde caracterizando-se pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, através de um tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização dos processos naturais.” Cumpre destacar que há países que tipificam a conduta da violência obstétrica, dentre outros, Argentina, Venezuela e México.
O sistema jurídico brasileiro já possui legislação genérica a respeito da violência obstétrica, embora não haja lei específica. Contudo, existe o Projeto de Lei 7.633/2014, em trâmite no Congresso Nacional, que dispõe sobre as diretrizes e os princípios inerentes aos direitos da mulher durante a gestação, pré-parto e puerpério e a erradicação da violência obstétrica.
A legislação nacional brasileira contempla a proteção da mulher quanto à prática de violência obstétrica. Alguns casos de violência obstétrica podem ser considerados crimes tais como homicídio, lesão corporal, omissão de socorro e crimes contra a honra.
A Constituição Federal de 1998 contém o princípio da igualdade, e dispõe sobre o direito à plena assistência à saúde. A Lei Maior enuncia de forma original o dever do Estado de coibir a violência contra as mulheres, incluindo, portanto, o dever de prevenir e punir a violência obstétrica.
Em 1995, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará). A Convenção destaca que a violência contra a mulher constitui grave violação aos direitos humanos e limita, absoluta ou parcialmente, o exercício dos demais direitos. Prevê essa convenção um importante catálogo de direitos a serem assegurados às mulheres, com a finalidade de que tenham uma vida livre de violência, não apenas no âmbito público, mas também privado. Consagra, portanto o dever do Brasil como Estado-parte, para que o mesmo adote políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.
As mulheres tem pleno direito à proteção no parto e de não serem vítimas de nenhuma forma de violência ou discriminação. A Convenção Belém do Pará determina em seu artigo 6º o seguinte: “O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros: a. o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação”.
Além disso, o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW). Os tratados de Direitos Humanos das Mulheres inclusive a Convenção CEDAW e Convenção de Belém do Pará tem o status constitucional, no nosso entendimento e de parte da doutrina.
Em que pese estes importantes compromissos internacionais assinados e adotados pelo governo brasileiro, gerando obrigações nos seus cumprimentos, muitas destas não estão sendo cumpridas a contento. Um exemplo de descumprimento diz respeito à garantia ao atendimento integral e eficiente na área da saúde, em especial no momento do parto.
A cada quatro anos, os países signatários da CEDAW necessitam apresentar um relatório periódico, submetendo-se às observações do Comitê CEDAW. O comitê elabora observações conclusivas ou recomendações. Em fevereiro de 2012, o Brasil apresentou seus resultados em Genebra, na 51ª Reunião do Comitê. Nesta ocasião, foi determinado que o país apresentasse em 2014 informações sobre dois temas específicos: saúde e tráfico de mulheres Em fevereiro de 2014 o Governo Brasileiro apresentou seu relatório que foi analisado em outubro/novembro de 2014. As recomendações do comitê colocam o Brasil numa situação delicada quanto à saúde da mulher, em especial quanto à atenção ao parto. Houve queda na posição do Brasil no IDH de gênero. Os direitos sexuais e reprodutivos ainda não são plenos e a atenção à saúde da mulher deixa muito a desejar. Esta condição internacional não nos surpreende, mas ainda é muito difícil conversar e discutir sobre a violência obstétrica.
O caso Alyne Pimentel é o mais emblemático quanto à violação ao direito a um parto saudável e pleno acesso à saúde. Aline, em 14 de novembro de 2002, com apenas 28 anos de idade, e 6 meses de gestação, buscou atendimento médico na rede pública de saúde de Belford Roxo (RJ). Apesar de apresentar um quadro de fortes dores ela foi liberada após administração de analgésicos. Sem melhora, retornou ao hospital, onde se constatou a morte do bebê. Submetida, após horas de espera, a uma cirurgia para a retirada placenta, o quadro se agravou e ela precisou ser transferida para um hospital em Nova Iguaçu, operação realizada, com grande demora e com omissão dos profissionais e do sistema brasileiro de saúde. No corredor deste hospital, devido à falta de atendimento médico adequado, Alyne faleceu em decorrência de hemorragia digestiva. O caso foi levado ao conhecimento do Comitê CEDAW da ONU em 2011, e o Brasil foi condenado ao pagamento de indenização por negligência no serviço público de saúde. Foi a primeira condenação internacional do Brasil em razão de morte materna.
O caso Alyne não é um caso isolado na realidade brasileira, a pesquisa realizada em 2010 indica que as formas mais comuns de violência são os gritos, os procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, e a falta de analgesia e negligência. A violência obstétrica pode, ainda, caracterizar-se das seguinte maneiras: recusa à admissão ao hospital (Lei 11.634/2007); impedimento de entrada de acompanhante (Lei 11.108/2005); violência psicológica (tratamento agressivo, grosseiro, zombeteiro, inclusive em razão de sua cor, etnia, raça, religião, estado civil, orientação sexual e número de filhos); impedimento de contato com o bebê; o impedimento ao aleitamento materno e a cesariana desnecessária e sem consentimento. Constituem, ainda, formas de violência obstétrica: realização de episiotomia de modo indiscriminado; o uso de ocitocina sem consentimento da mulher; a manobra de Kristeller (pressão sobre a barriga da gestante para empurrar o bebê); a proibição da mulher se alimentar ou de se hidratar e obrigar a mulher a permanecer deitada.
Uma a cada quatro brasileiras já foram vítimas de violência obstétrica. A pesquisa Nascer no Brasil verificou o elevado número de cesáreas, que se encontra em torno de 52% no setor público podendo chegar a 88% no setor privado, contrariando as recomendações da OMS. Desde 1985, a comunidade médica internacional considera que a taxa ideal de cesárea seria entre 10% e 15%. Entendo que a cesárea bem indicada, é um recurso importante na medicina, todavia ela não deve ser utilizada por conveniência, por ser mais rápida, exigindo um tempo menor de participação dos profissionais de saúde, tampouco por questões econômicas para manter menos tempo, por exemplo, um leito de hospital ocupado.
A violência obstétrica impede que o Brasil alcance os 4º e 5º Objetivos do Milênio: reduzir a mortalidade na infância e melhorar a saúde materna. O Brasil não irá atingir a meta para redução de morte materna para os patamares de 10 a 20 mortes maternas por 100 mil nascituros, conforme preconiza a organização mundial de saúde. Atualmente, se estima que tenhamos em torno de 50/60 mortes maternas por 100 mil nascituros. Em razão dos números preocupantes, algumas ações práticas vêm sendo realizadas.
Assim por exemplo, houve uma audiência pública realizada pelo Ministério Público de São Paulo para debater a “violência obstétrica”, em parceria com a sociedade civil, representada pela ONG Artemis, com a Defensoria Pública, o Ministério Público Federal, a Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, bem como participação de membros dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, sendo um bom sinal no sentido de que um pacto entre a sociedade civil e os poderes constituídos é imprescindível para que caminhemos na direção da efetivação do direito à autonomia da mulher, ao respeito à sua dignidade, prevenindo mortes maternas evitáveis e garantindo, assim, o pleno acesso à saúde e a um atendimento médico de qualidade. O principal aspecto da audiência pública foi dar voz às mulheres. As mulheres que tiveram seus direitos desrespeitados durante o parto e foram vítima de violência puderam se manifestar em público e expor a sua dor.
Após a audiência pública foram realizadas reuniões de trabalho que resultaram no avanço de algumas ações concretas: o debate maior sobre a oferta do plano de parto ou a declaração de vontade antecipada à gestante; o questionamento sobre as perícias realizadas nos processos que tratam de negligência ou imperícia médica; a publicação das taxas de cesáreas em alguns hospitais; o recente concurso para obstetriz; o compromisso de Hospital Universitário em estabelecer regras claras num protocolo de atendimento à gestante e o convênio com algumas casas de parto que estão sendo incorporadas ao SUS.
Também cresceu a conscientização sobre o direito ao acompanhante que se encontra previsto em lei (Lei 11.108/2005), pode e deve ser exigido pela gestante. Entendo que a presença de um acompanhante pode evitar a prática de violência obstétrica. O acompanhante é de livre escolha da gestante deve ser admitido tanto em partos normais ou cesáreas, em hospitais públicos ou privados. A falta de estrutura física não pode servir como desculpa para a proibição ao exercício deste direito, devendo os hospitais estar devidamente equipados para atender às gestantes.
As agendas essenciais para o combate à violência obstétrica devem incluir: o amplo debate com participação da sociedade, dos profissionais de saúde, da academia, do sistema de justiça; a afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos com um olhar interseccional (não apenas de gênero, mas também étnico racial e de classe); a efetivação dos direitos contidos na Constituição Federal, na Convenção CEDAW e na Convenção Belém do Pará; a sensibilização e formação dos profissionais de saúde e do direito; a garantia ao direito ao acompanhante à gestante; a garantia ao direito à informação; a garantia ao acesso pleno à saúde e o incentivo às boas práticas obstétricas, fundamentadas em evidências científicas.
A morte de Alyne Pimentel era evitável. Se não queremos mortes maternas evitáveis no Brasil, temos que desconstruir os estereótipos de gênero, tratar as mulheres como titulares de direitos, e combater todas as formas de violência contra a mulher, em especial a violência obstétrica, que infelizmente não apenas existe, mas também mata.
Acesse no site de origem: Estado tem o dever de prevenir e punir a violência obstétrica, por Fabiana Dal’Mas Rocha Paes (ConJur, 07/12/2015)