Para professora, a criminalização se soma a outras situações de vulnerabilidade que catalisam o sofrimento das mulheres
A luta pela descriminalização e regulamentação do aborto não deve estar dissociada de pautas mais gerais, como renda, trabalho e educação. Pelo contrário, são assuntos que, juntos, escancaram e explicam as diversas camadas de vulnerabilidade social que atingem mulheres.
Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), afirma o debate sobre o aborto enfrenta os limites estruturais do capitalismo e aqueles provenientes do contexto político brasileiro atual. Ainda assim, a pesquisadora afirma que essas barreiras não podem, em hipótese alguma, minar o debate sobre a descriminalização do fim planejado da gravidez.
“Nós precisamos falar de aborto. Eu sei que é difícil em um contexto em que esse é um tema bastante utilizado para gerar polarização, em que a aceitação do direito ao aborto no Brasil pela população ainda é baixa em relação inclusive a países vizinhos”, afirma Biroli.
Para a professora, os avanços nos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres deve ocorrer paralelamente ao desenvolvimento de outros direitos. “Se a gente não tiver educação sexual nas escolas, se a gente não tiver programa de política pública adequada para a oferta de anticoncepcionais para prevenção de gravidez na adolescência e IST [Infecções Sexualmente Transmissíveis], as nossas meninas, e sobretudo aquelas em condição de maior vulnerabilidade, vão continuar a ter uma situação extremamente difícil do ponto de vista do emprego e da possibilidade de criar seus filhos e manter também para si alguma independência econômica”, afirma. “Que coletividade é essa que castiga mulheres?”
Na entrevista, Flavia Biroli também fala sobre as expectativas em relação ao governo Lula 3, a centralidade do mundo do trabalho no para mulheres e a sua relação com diversas violações de direitos. Leia a íntegra da conversa a seguir:
Brasil de Fato: A senhora citou numa entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos que nos países em processo de “desdemocratização” é possível observar o aumento dos ataques às pautas feministas. No Brasil, a gente teve o governo Bolsonaro, que comprova esse aumento. Agora, sob o governo Lula, espera-se que esse cenário mude, ainda que sob as contradições do governo brasileiro, o neoconservadorismo em ascensão e as limitações do sistema capitalista. Sob o governo Lula, como a senhora espera que as pautas feministas sejam tratadas?
Flávia Biroli: Acho muito importante ter em mente que o neoconservadorismo é uma reação ativa aos avanços em pautas igualitárias e de direitos humanos. Uma reação que combina, inclusive, a oposição às agendas de direitos individuais, como direitos reprodutivos e sexuais, e às agendas de direitos sociais que visam a reduzir as desigualdades na sociedade.
Portanto, não é apenas pelo lado estrutural do capitalismo que este momento restringe a capacidade estatal em muitos sentidos, mas também porque há uma atividade em vários espaços sociais e políticos que se apresenta com o objetivo de bloquear pautas igualitárias e reverter avanços nesse sentido.