Mais de 30 organizações pedem para ser ouvidas em duas ações sobre a liberação
(O Globo, 23/10/2017 – acesse no site de origem)
Todo tema polêmico atrai, naturalmente, a atenção de muita gente interessada em dar palpite. É o que está acontecendo com duas ações que tratam da liberação do aborto em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF): 32 entidades já pediram para ingressar como “amicus curiae”. No jargão jurídico, isso quer dizer que elas avaliam ser capazes de prestar informações relevantes para o debate na Corte e a formação da convicção dos ministros, mesmo não estando diretamente envolvidas na causa. São 19 a favor da liberação da interrupção da gravidez, 12 contrárias e uma que não explicitou sua posição.
A lista vai de órgãos oficiais, como o governo do estado de Sergipe e o Ministério Público paulista, a organizações não governamentais, como a Human Rights Watch. Também há um partido político, o PSC; associações profissionais, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP); entidades religiosas, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); e grupos que misturam atividade profissional com religião, como Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) e a União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp).
Há atualmente duas ações no STF. A mais antiga, proposta pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), pede a liberação do aborto em caso de zika, infecção que pode levar bebês à condição de microcefalia, quando nascem com a cabeça menor do que o normal. A relatora é a presidente do tribunal, ministra Cármen Lúcia. A segunda ação foi proposta pelo PSOL e pede que o aborto seja autorizado nas 12 primeiras semanas de gravidez, independentemente de haver qualquer problema na gestação. Também solicita a suspensão das prisões em flagrante, dos inquéritos policiais e dos processos e decisões judiciais baseados nos artigos do Código Penal que criminalizam o aborto. A relatora é a ministra Rosa Weber.
Quem é a favor da descriminalização do aborto chama a atenção principalmente para os direitos das mulheres e para a mortalidade provocada pelos abortos clandestinos. No caso de gestação com zika, as entidades dizem que obrigar uma mulher a dar continuidade à gravidez equivale a uma tortura psicológica. Esse argumento foi usado inclusive pelo ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, instado por Cármen Lúcia a dar um parecer em 2016. A Procuradoria Geral da República (PGR) ainda não se manifestou na outra ação, que trata da liberação do aborto nas 12 primeiras semanas.
As entidades contrárias ao aborto sustentam que a vida começa a partir da concepção, sendo necessário portanto proteger o feto. Apontam ainda que cabe apenas ao Congresso fazer mudanças na legislação. Hoje, o Código Penal permite aborto em caso de estupro e risco de morte de mãe. Além disso, em 2012, o STF liberou a interrupção da gravidez se o feto for anencéfalo (sem cérebro), por não ter chance de sobreviver fora da barriga da mãe.
No caso de gravidez com zika, o argumento é de que a permissão do aborto é comparável à eugenia, ou seja, um descarte de quem não possui determinadas características desejadas. Instados a se manifestar pelo STF, Presidência da República, Senado, Câmara e Advocacia-Geral da União (AGU) também apresentaram pareceres contrários às ações.
Até agora, Rosa admitiu o ingresso das três primeiras entidades que pediram para opinar: o PSC, a Ujucasp e o Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF). Em comum, são contra a liberação do aborto. Ao todo, foram 24 pedidos de ingresso como “amicus curiae”, sendo que 16 são favoráveis ao pedido do PSOL e oito são contrários. No caso da ação com Cármen Lúcia, ela não deliberou ainda a respeito das entidades que poderão opinar no processo. Já são 13 entidades querendo dar seu pitaco, das quais cinco são contra a liberação do aborto em caso de zika, sete são a favor e uma não deixou clara sua posição. Algumas entidades pleiteiam ingressar nas duas ações.
As entidades também travam uma guerra de números. A Ujucasp diz, por exemplo, que nos Estados Unidos, desde a liberação da interrupção da gravidez em 1973, houve um aumento de 600% da prática nos anos seguintes. Já o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim) e a Human Rights Watch (HRW), entre outros, apresentam dados na outra direção, contemplando a questão da saúde da mulher.
O STF informou que não há previsão de quando vai ser julgada a ação que está com Cármen Lúcia. Rosa Weber informou que vai marcar uma audiência pública para debater o tema, mas não especificou a data. Questionada se é viável a participação de tantas entidades em uma única ação, ela respondeu:
— Dependendo do tema. E esse tema parecer ser bastante controvertido.
André de Souza