A Jessica, e tantas outras Jéssicas, precisam de nós, por Iara Gonçalves Carrilho

19 de fevereiro, 2018

A História de Jessica e seu bebê de 2 dias de vida comoveu a todos nós. A todos nós, refiro-me, a nós, que sentimos o sangue, quente, correndo pelas veias, e que não temos como mote o punitivismo desenfreado, tão característico do nosso Sistema de Justiça. A nós, que enxergamos, e que percebemos Jessica, e seu bebê. E que às vidas deles reputamos o mesmo valor dado às nossas próprias.

(Justificando, 19/02/2018 – acesse no site de origem)

Desse “todos nós”, eu quero falar com uma parte.

Quanto aos outros, tão distantes desse “todos nós”— àquela parte que não quer nem lhe é conveniente ver em Jessica ou em seu bebê, seja por sua raça, ou por sua classe social, qualquer dignidade — sinceramente, hoje, não quero me dirigir. Temos um longo 2018 pela frente. Salvemos verbo e energia.

É irrefutável que o cárcere é o lugar das mais graves violações ocorridas em nosso país.

Nessa máquina seletiva, que encarcera seres humanos, há uma parcela que o Departamento Penitenciário Nacional chama de, numericamente, “pouco significativa”. Estima-se que a média brasileira seja de 5,8% de mulheres presas para 94,2% de homens.

Esta parca significatividade em números transforma-se, rapidamente, em real invisibilidade de seres humanos. A fria fração é absorvida pelo restante esmagador, fazendo com que estes seres invisíveis passem a dispender suas vidas em locais, que, além das condições de salubridade características de masmorras medievais, assim reconhecidas pelo próprio Estado, são locais, na esmagadora maioria das vezes, pensados e conduzidos por homens e para homens.

O Direito carrega, nos dizeres de Samantha Buglione, um parâmetro de ser humano que é masculino[1]. E essa tônica androcêntrica se faz presente desde a criação, passando pela interpretação, à aplicação da Lei.

Não por acaso, durante a execução penal, o cenário de violações, sob a perspectiva do feminino, é avassalador.

Nesse sentido, compreende-se que “[…] o julgamento das mulheres correlaciona-se muito menos com os crimes que elas cometem do que o julgamento dos homens […]”[2].

Trata-se da noção da dupla desviância, referida por incontáveis autores. Explica-se, de maneira simplista:

[…] Nos presídios fala-se com naturalidade: a mulher recebe penas mais duras que os homens. A razão disso é a presença do conceito da “dupla desviância”, que explica a maior reprovabilidade da conduta criminosa feminina. Além de desviar-se no sentido de se inserir na ilegalidade, o que teoricamente para o senso comum representa assumir o posto de inimigo da sociedade “de bem”, lesador da paz e da incolumidade pública, a mulher desvia-se dos papeis que cabem ao seu gênero […][3].

Francis Heidensohn apud Raquel Maria Navais de Carvalho Matos resume o cenário com maestria ao colocar que as mulheres podem ser tratadas pelo sistema de justiça criminal de forma mais dura por serem “[…] mulheres desviantes que são desviantes como mulheres […]”[4].

O único lugar que traz um suspiro de visibilidade à mulher vítima de violência é quando ocupa o papel reducionista da boa mãe. Neste complexo contexto do sistema prisional, de um determinado prisma —qual seja, a valorização que é dada a sua existência por quem a observa — ser mãe é um fator que retira das mulheres um pouco de vulnerabilidade. Quando está grávida, ou tem um recém-nascido no colo, as chances de ser vista em sua condição humana são significativamente maiores.

Ainda que sob esse prisma, nem assim, a mulher vítima de violência é enxergada, necessariamente, em seu próprio e imerecido sofrimento.

A sensação de compaixão e a empatia aparentemente dirigidas a essas mulheres encarceradas se dá, muitas vezes, em razão da vida inocente que carregam em seus ventres, que, por óbvio, merece a mais alta das proteções.

Ocorre, porém, que, a despeito de qualquer eventual suspeita da condição de autor de qualquer ilícito, a vida de todo e qualquer ser humano deveria presumir-se digna de valor, e sem o pressuposto de estar acompanhada de uma outra, para legitimar a sua.

Interessante notar que, em outra análise, a vida desse mesmo bebê, a depender de seu gênero, carrega cargas axiológicas distintas e, ouso provocar, que pode ser que a comoção característica de histórias de encarceradas grávidas, de fato, se dê pela perspectiva de que, naquela barriga, possa vir a nascer um homem. Fosse o filho de Jessica uma menina, tão logo estivesse mais crescida, seria ela alvo das mais variadas e cruéis  violências de gênero. Outra vida de pequeno valor.

É inquietante que o permissivo legal não seja aplicado[5] e que o Judiciário, em especial o de primeiro grau, não dê efetividade às Regras de Bangkok[6]. Mais ainda, que o entendimento majoritário da possibilidade de aplicação de penas restritivas de direito a esses casos também não seja aplicado.

Mas o fato é que quase tudo do que dói em muitos de nós não é pela Jessica.

E precisa ser pela Jessica.

O cárcere, para a Jessica, é lugar de muita violência.

A Jessica, e tantas outras Jéssicas— estejam elas grávidas, com um filho nos braços ou não — precisam de nós, da nossa compaixão, da nossa empatia e de nossa Luta.

Iara Gonçalves Carrilho é advogada. Especialista em Ciências Criminais. Autora do Livro “A Violência de Gênero Além das Grades”, pela editora Lumen Juris.


[1] BUGLIONE, Samantha. A mulher enquanto metáfora do direito penal. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, ano 5, v. 9/10. 2000, pp. 203-219 apud MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas, São Paulo: Saraiva. 2014, p. 175 apud PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012 apud PEREIRA, Luísa Winter; SILVA, Tayla de Souza. Por uma criminologia feminista: Do silêncio ao empoderamento da mulher no pensamento jurídico criminal In: SÁ, Priscilla Placha (org.). Dossiê: as mulheres e o sistema penal. Curitiba: OABPR, 2015, p. 18. Disponível em: <http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2018.

[2] HUDSON, Bárbara, Gender issues in penal policy and penal theory apud MATOS, Raquel Maria Navaisde Carvalho. Vidas raras de mulheres comuns: Percursos de vida, significações do crime e construção daidentidade em jovens reclusas, p. 39. 2006. 443 f. Tese — Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Mi­nho, Minho: Repositorium da Universidade do Minho. 2006. Disponível em<https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/6249/1/Tese%20Douto­; ramento%20Raquel%20Maria%20Navais%20Carvalho%20Matos.pdf>. Aces­so em: 16 fev. 2018.

[3] FERREIRA, Fernanda Macedo; BENDLIN, Inaiê de Melo; HORST, Juliana de Oliveira; DELAPORTE,Priscilla Horwat; GOMES, Thais Candido Stutz. Opressão e Transgressão: o paradoxo da atuação femininano tráfico de drogas. In: SÁ, Priscilla Placha (org.). Dossiê: as mulheres e o sistema penal, p. 165.

[4] HEIDENSOHN, Francis. Women and crime: Questions for criminology. apud MATOS, Raquel

Maria Navais de Carvalho. Vidas raras de mulheres comuns: Percursos de vida, significações do crime econstrução da identidade em jovens reclusas, p. 149. M. Maguire, R. Morgan, & R. Reiner (Eds.), The Oxford handbook of criminology. Oxford: Clarendon, 1997, pp. 761–796 apud Matos, Raquel Maria Navais Carvalho. Vidas raras de mulheres comuns: Percursos de vida, significações do crime e construção da identidade em jovens reclusas. 2006. 443 f. Tese de Doutorado – Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, Minho: Repositorium da Universidade do Minho. 2006, Disponível em <https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/6249/1/Tese%20Doutoramento%20Raquel%20Maria%20Navais%20Carvalho%20Matos.pdf>. Acesso em: 16fev. 2018.

[5] Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: […] IV –gestante; (Redação dada pela Lei n. 13.257, de 2016); V – mulher com filho de até 12 (doze) anos deidade incompletos (Incluído pela Lei n. 13.257, de 2016); VI – homem, caso seja o único responsávelpelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. (Incluído pela Lei n. 13.257, de2016) (BRASIL. Decreto-lei n. 3.689/41, de 3 de outubro de 1941).

[6]Documento da ONU, firmado em 2010,com diretrizes para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativasde liberdade para mulheres infratoras, raiz do Marco Legal da Primeira Infância que trouxe a modificação legal ao supracolacionado art. 318, do CPP (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para oTratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras.Conselho Nacional de Justiça, Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e doSistema de Execução de Medidas Socioeducativas, Conselho Nacional de Justiça, 1. ed. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2016. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/27fa43cd9998bf5b43aa2cb3e0f53c44.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2018.

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