Ação pede garantia de serviços essenciais de saúde para crianças com microcefalia, que podem estar vulneráveis também à covid-19 devido a problemas respiratórios.
(HuffPost, 23/04/2020 – acesse no site de origem)
O STF (Supremo Tribunal Federal) inicia nesta sexta-feira (24) o julgamento da ação que pede o direito à interrupção da gravidez de mulheres infectadas pelo zika vírus e em sofrimento mental. A ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5581 também exige a garantia de direitos violados na epidemia iniciada no Brasil em 2015, como acesso aos serviços essenciais de saúde e pensão vitalícia para crianças com síndrome congênita causada pelo vírus.
Em meio à pandemia do novo coronavírus, o zika ainda circula no Brasil. Em 2019, 1.138 novos casos de crianças com suspeita de síndrome congênita pelo vírus foram notificados. Em 2020, foram 227. A síndrome inclui sequelas provocadas pelo zika na gravidez, como microcefalia e alterações ortopédicas.
Se na crise de saúde atual o impacto sobre as mulheres chama atenção pelo aumento da violência doméstica, sobrecarga de trabalho em casa e dificuldades no mercado de trabalho, a epidemia de zika afeta diretamente o corpo feminino na gestação. É por esses motivo que a ADI pede a descriminalização do aborto em caso de ela estar infectada pelo zika. Hoje a interrupção da gravidez só é permitida no Brasil se a mulher foi vítima de estupro, corre risco de vida ou se o feto é anencéfalo.
Acesso aos serviços de saúde
Ajuizada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos e coordenada pela Anis – Instituto de Bioética, a petição inicial tem outros 4 pedidos principais. Um deles é a oferta de serviços de atenção especializada em saúde para crianças com a síndrome causada pelo zika em um raio de até 50 km da residência, ou garantia de transporte gratuito aos serviços quando a distância for maior do que 50 km.
O zika tem afinidade por células do sistema nervoso central. Os sinais dependem da área do cérebro afetada e do tipo de lesão. Algumas características das crianças acometidas pelo vírus são: o chamado polegar empalmado (dedo virado para a palma da mão), postura fetal, hipertonicidade (pernas e braços rígidos), deficiências auditivas e oftalmológicas e de deglutição.
Na estimulação com fisioterapeuta, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional, a criança aprende a fazer novas ligações neurais para conseguir se desenvolver até 3 anos. Quando o acesso ao serviço é tardio, a criança já passou por essa etapa, e o comprometimento motor é maior.
O acesso a essas terapias se faz ainda mais necessário com o surto do novo coronavírus, uma vez que essas crianças com zika são ainda mais vulneráveis a problemas respiratórios. “Se essa crianças não tiverem o acompanhamento constante do serviço especializado, elas podem regredir o que já conseguiram avançar e ter o quadro piorado, o que as torna ainda mais vulneráveis à covid”, afirmou ao HuffPost a pesquisadora e advogada da Anis, Gabriela Rondon. “O serviço para essa criança é essencial [durante a pandemia] e precisa ser mantido”, completa.
A maioria das mortes por covid-19 é causada por complicações decorrentes de uma pneumonia provocada pelo vírus. “A pneumonia causada pela covid-19 tem um fenômeno muito frequentemente associado que chama trombogênese. O processo inflamatório é de tal ordem grande que dizemos que o paciente é tomado por uma tempestade imunológica, pela liberação de muitas substâncias chamadas citocina. Esse paciente sofre uma certa anarquia no sistema imune dele”, afirmou a pneumologista Margareth Dalcolmo, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, em entrevista ao HuffPost.
Apesar de ser dever do Estado garantir o acesso a esses serviços, é comum que as famílias encontrem limitações no transporte, especialmente no interior. Série de reportagens do HuffPost de 2017 no sertão alagoano contou o drama de mães como Rosângela Ferreira de Barros, moradora da zona rural de Inhapi, município a 67 quilômetros de Santana do Ipanema, cidade onde o filho com síndrome congênita do zika fazia estimulação precoce. Na semana do atendimento médico, a ida à cidade vizinha não estava certa. Era uma terça-feira, e Rosângela não havia conseguido pegar na Secretaria de Saúde a passagem da van que faz o transporte.
A ADI pede também políticas de planejamento familiar e saúde reprodutiva, incluindo distribuição ampla de métodos contraceptivos mais eficazes e de longa duração, além de informações atualizadas e de qualidade sobre a doença e estratégias de prevenção.
Pensão vitalícia para crianças
Outro dos pedidos principais da ação em análise no STF é o acesso universal ao BPC (Benefício de Prestação Continuada) às famílias vítimas de síndrome congênita do zika. No entendimento da Anis, a recente lei da pensão vitalícia para as crianças afetadas não é suficiente porque restringe o benefício a quem nasceu entre 2015 e 2019 e ainda as submete ao mesmo recorte de renda de miserabilidade que já impedia o acesso ao BPC. Para ter direito, é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja menor que 1/4 do salário mínimo vigente.
O entrave financeiro se torna ainda mais grave com os efeitos atual crise sanitária. “A gente tem um receio muito grande que os ministros sejam levados a compreender que o pedido perdeu objeto porque já houve a pensão, mas as famílias continuam com o risco de não receber, como muitas não recebem, e neste momento de pandemia é crucial porque conseguir ter acesso a esse benefício é condição de subsistência”, afirmou Gabriela Rondon.
Em fevereiro de 2020, o Senado votou a medida provisória (MP) 894/2019, que determina o pagamento de pensão mensal vitalícia, no valor de um salário mínimo, para crianças com sequelas do zika. O texto proíbe a acumulação com o BPC e exige desistência de ação judicial contra o governo relacionada ao tema. Segundo o Ministério da Cidadania, na época, 3.112 crianças com microcefalia, nascidas neste período, recebiam o BPC. A pensão deverá ser requerida no INSS e concedida após perícia médica que confirmará a relação entre a deficiência e o zika.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, chegou a apontar inconstitucionalidades na medida provisória, que foi parcialmente modificada. O texto original só previa a pensão para crianças nascidas até 2018, por exemplo.
São recorrentes as queixas sobre a demora ou a negativa do pedido do BPC entre as famílias atingidas pelo zika. Os documentos exigidos são considerados excessivos pelas mães, e a falta de transporte para chegar às agências do INSS é outra barreira.
Para ter direito, é preciso que a criança seja diagnosticada com o CID (Código Internacional de Doenças) para microcefalia. Também é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja menor que 1/4 do salário mínimo vigente, embora em 2013 o STF tenha reconhecido a inconstitucionalidade do critério de renda para concessão do benefício.
Na decisão, o ministro relator, Gilmar Mendes, sustentou que a norma passava por um processo de inconstitucionalização devido à alteração da conjuntura política e econômica do País. Ele destacou que programas assistenciais no Brasil usam o parâmetro de 1/2 salário mínimo per capita.
Em 2017, uma das famílias que aguardava o BPC no interior de Alagoas era a de Patrícia Santos Silva, moradora de Santana do Ipanema, a maior cidade do sertão alagoano, a 207 quilômetros de Maceió. Considerado o “caso zero” da síndrome causada pelo Zika no município, seu filho Gabriel Santos Silva nasceu em 9 de novembro de 2015.
No dia em a reportagem visitou a casa de Patrícia, o almoço estava sendo feito no fogão à lenha porque o gás havia acabado no dia anterior. O pai dos 6 filhos trabalha na roça e no inverno consegue tirar cerca de R$ 150 por semana. A outra fonte de renda são R$ 668 do Bolsa Família. Com o dinheiro do programa, eles pagam gás, energia elétrica, compram alimentos e material escolar.
Por Marcella Fernandes