(Folha de S. Paulo, 24/01/2015) Uma nova revisão de estudos mostrou que não há evidência de que um medicamento injetável muito usado em tratamentos de reprodução melhore as chances de gravidez ou evite abortos.
A heparina é um anticoagulante indicado originalmente para prevenir e tratar doenças que levam à formação de coágulos no sangue (trombose).
Há alguns trabalhos, com pouca evidência científica, apontando que ele poderia beneficiar também mulheres que sofram abortos habituais (mais de três sucessivos, sem causas genéticas) ou que tenham trombofilia [alterações na coagulação que predispõem a trombose].
Nos últimos anos, o remédio passou a ser indicado ainda a mulheres sem problemas de coagulação, que não estão tendo sucesso nas fertilizações in vitro (FIV) porque o embrião não se fixa no útero. O uso é “off-label” (fora das recomendações da bula).
A hipótese dos médicos, baseada em estudos experimentais, é que o medicamento evitaria a formação de “microcoágulos”, não detectáveis em exames, que atrapalhariam a implantação do embrião no endométrio (camada que reveste o útero).
Também teria a função de fazer com que as células da placenta cresçam com maior velocidade, o que aumentaria as chances da gestação.
Agora, um trabalho da Cochrane (rede de cientistas independentes que avalia a efetividade de tratamentos) revisou três estudos clínicos sobre o uso da heparina em tratamento de reprodução.
O resultado é que não há evidência de que a medicação melhore as chances de gravidez em mulheres sem problemas de coagulação.
“Não há justificativa para o uso”, concluem os autores em artigo na revista “Fertility and Sterility” deste mês. Em um dos estudos, de 5% a 7% das mulheres tiveram sangramentos, um dos efeitos colaterais da medicação.
A enfermeira Telma Santos, 34, diz ter tomado heparina por indicação do médico nas três tentativas de FIV, mesmo sem ter nenhum problema de coagulação sanguínea. Ela não engravidou.
“A gente se sente um rato de laboratório porque muita coisa usada no tratamento não tem evidência. Mas acaba topando tudo para ter um filho”, diz ela, que desistiu do tratamento reprodutivo.
Já Patrícia Strapasson, 43, atribui à medicação o sucesso da gestação após dois abortos anteriores. Exames feitos após as perdas apontaram que ela tinha trombofilia. “A heparina me ajudou a ter meu filho”, diz.
EXAGERO
Para o médico Artur Dzik, diretor da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, há um exagero hoje na indicação da heparina nos tratamentos reprodutivos, especialmente nos casos de falha de implantação do embrião.
“Falha de implantação não é igual ao aborto habitual. Falhas podem ser multifatoriais, relacionadas a questões como a estrutura dos laboratórios, treinamento e capacitação dos embriologistas, meio de cultura e idade do casal.”
Segundo ele, na ausência de problemas como a trombofilia, o uso da heparina é muito controverso. “A melhora da taxa de gravidez não está comprovada na maioria dos estudos clínicos.”
O ginecologista Eduardo Motta, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), concorda. “Existe um uso irracional da heparina.”
Para ele, mesmo nos casos de trombofilias, a utilização é discutível. “Não é porque tenho um marcador que obrigatoriamente terei a doença.”
Claudia Collucci
Acesse o PDF: Medicamento receitado a mulheres que querem engravidar não funciona (Folha de S. Paulo, 24/01/2015)