(Folha de S.Paulo, 23/06/2016) A #meuaborto nasceu da vontade de um grupo de mulheres – amigas e conhecidas – de discutir maneiras de intervir no processo de retrogradação dos direitos femininos que está em curso no país hoje, muito por conta do domínio exercido pela bancada religiosa no congresso. Nós nos reconhecemos nas ruas, nos manifestando contra Eduardo Cunha e o Projeto de Lei 5069, que tenta tirar das mulheres brasileiras os poucos direitos que temos sobre os nossos corpos quando o assunto é aborto.
Desses encontros potentes surgiu um grupo de conversa no Facebook para pensar ações concretas. Debatemos durante algumas semanas sobre como poderíamos dar voz e visibilidade às mulheres que são caladas pela legislação antiquada e moralista que prevalece no país. Decidimos, então, na esteira de campanhas bem sucedidas como #meuprimeiroassédio e #agoraéquesãoelas, criar a hashtag #meuaborto, com o intuito de chamar atenção para o debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil e tirar da invisibilidade essas histórias, que são tantas, tão diversas e tão próximas.
Pensamos em várias hashtags possíveis, mas #meuaborto ganhou por contemplar a todos – não apenas as mulheres que quisessem contar suas próprias histórias, mas também outras que tivessem histórias ao lado de amigas e familiares, além de homens que tivessem dado apoio às suas companheiras durante o processo. Sabemos que a palavra “aborto” causa muito choque e poderia afastar as pessoas da campanha, mas acreditamos que é preciso desmistificar também a palavra, porque sem falar abertamente sobre o assunto fica ainda mais difícil mudar a realidade.
Tínhamos receio de que a página não fosse compreendida em sua completude e que os relatos das pessoas fossem expostos à toa, mas botamos ela no ar seguras de que faríamos o que estivesse ao nosso alcance para divulgá-la, e esperançosas de que aos poucos as histórias fossem surgindo. Não demorou. Recebemos uma enxurrada de emails e mensagens. E uma enxurrada ainda maior de comentários horríveis a cada relato postado.
Algumas coisas nos impressionaram muito nesse feedback. Primeiro o contraste entre as centenas de comentários no estilo “fez porque quis” e “fez agora cuida” com os relatos que falam do abandono do parceiro. São várias histórias de mulheres que foram abandonadas por seus companheiros assim que contaram da gravidez, ou que foram obrigadas pelos mesmos a abortar, ou ainda (e pior) que foram chamadas por eles de assassinas por considerarem abortar e, após decidirem seguir com a gravidez, foram abandonadas mesmo assim.
Pensamos até em subir uma hashtag do tipo #homemabortatododia, mas conversando com algumas parceiras percebemos que era uma injustiça com as mulheres que tinham abortado. Porque o abandono é bem pior, bem mais egoísta, e tem consequências muito piores. O aborto é de um embrião ainda sem sistema nervoso e sem qualquer emoção, já o abandono é de uma criança, um ser humano com inteligência e sentimentos, e deixa marcas profundas para toda a vida. Fora que o aborto é uma decisão extremamente pensada por parte da mulher, porque difícil. Na esmagadora maioria das vezes ela leva em conta as vidas de todos os envolvidos, com cautela e zelo.
Chovem relatos de mulheres que pensam no ônus que essa criança vinda numa hora errada seria para os avós e para os companheiros, que muitas vezes ainda não terminaram os estudos, e assim por diante. Já o homem que abandona pensa apenas em si, em como a sua vida iria mudar.
Outra coisa que nos impressiona é a persistência do argumento religioso raso, que taxa as mulheres de assassinas, como se a “vida” de um feto importasse mais do que a de quem já está viva. Curioso que, quando postamos um dos relatos mais fortes na página, de uma mulher que diz que entenderia se a mãe a tivesse abortado, posto que teve uma infância sofrida e só, praticamente abandonada, não vimos nenhum comentário desse tipo. É impressionante como se fala tanto em “salvar a vida do feto”, mas não se debate o que vai ser feito dessa criança depois.
Por fim, mas não menos importante, nos emociona ler cada comentário de apoio, cada desabafo, cada agradecimento por estarmos mexendo nesses baús. É muito revoltante ler os relatos e saber que muitas dessas mulheres se culpam todos os dias pelo que fizeram, e parte dessa culpa vem do processo turbulento e nebuloso pelo qual elas tiveram que passar para conseguir abortar, quando temos convicção de que deveria ser uma escolha amparada por médicos e psicólogos – como é em países onde o aborto é permitido por lei nos primeiros meses da gestação. Uma escolha difícil, sim, com uma carga emocional grande, mas uma escolha, um direito da mulher e ponto.
Ninguém gosta de abortar, ninguém prefere o aborto à prevenção. E até por isso estamos colocando em nosso site uma aba inteira dedicada a falar abertamente sobre métodos contraceptivos.
Não somos a favor do aborto, como se é a favor das baleias ou do mico leão dourado. Somos a favor da sua legalização, para que o que já é um fato seja respaldado legalmente e não siga tirando a vida de milhares de brasileiras. Deveria ser simples, e por isso seguiremos aqui repetindo até que o barulho seja ensurdecedor:
Nossos corpos, nossas regras.
Nossos corpos, nossas regras.
Ana Rios; Fabiane Pereira; Luiza Vilela e Maria Rezende são do Coletivo #MeuAborto
Acesse no site de origem: #MeuAborto: até quem nunca abortou tem uma história de aborto pra contar, por Ana Rios; Fabiane Pereira; Luiza Vilela e Maria Rezende (Folha de S.Paulo, 23/06/2016)