Mulheres processadas por aborto: não há como provar que houve crime, diz defensora pública

01 de outubro, 2019

Ana Rita Prata trabalhou em 30 casos de mulheres processadas por aborto no estado de São Paulo 

(Revista AzMina, 01/09/2019 – acesse no site de origem)

Em 2014, uma mulher deu entrada em um hospital em Marília, interior de São Paulo. Ela estava grávida e sentindo dores e foi atendida. Horas depois, saiu presa em flagrante sob a acusação de ter provocado um aborto. O Ministério Público pediu arquivamento do processo no ano seguinte, após concluir que as investigações não constataram crime. Ao que tudo indicava, ela teve um aborto espontâneo. Mas só cinco anos depois o Tribunal de Justiça de São Paulo ordenou que o hospital pagasse uma indenização de R$ 5 mil por danos morais.

“O sistema criminal não tem como afirmar de forma justa que aquela mulher praticou o crime de aborto. As provas trazidas nesses processos são, via de regra, ilegais”, afirma Ana Rita Prata, defensora pública que integra o Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria de São Paulo. As provas são ilegais porque tudo que a paciente diz a um médico está sujeito a sigilo médico, e ao fazer a denúncia, o profissional de saúde está quebrando esse sigilo.

A afirmação da defensora é com conhecimento de causa. Em 2017, junto com outras defensoras do Nudem, ela entrou no Tribunal de Justiça com pedido de habeas corpus para 30 mulheres acusadas de aborto e conseguiu cinco. Ela descobriu as histórias examinando milhares de inquéritos durante um ano. Em agosto do ano passado, Ana relatou esses casos na audiência pública do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a ação que pede a descriminalização do aborto.

O aborto no Brasil é crime previsto no código penal.  A lei permite que uma mulher interrompa a gravidez apenas em três casos: estupro, risco de vida à mulher e anencefalia do feto (ausência ou má formação do sistema cerebral).

Em entrevista à Revista AzMina, Ana conta como funciona um processo criminal por aborto no Brasil.

Revista AzMina: Qual o trabalho da Defensoria e do Núcleo quando falamos do tema aborto?

Ana Rita Prata: Temos que pontuar algumas atuações quando falamos de aborto. A primeira delas é, considerando que a prática do aborto no Brasil é crime, salvo em três situações, a Defensoria garante a defesa de mulheres acusadas da prática de aborto no estado de São Paulo. É atribuição da Defensoria garantir a defesa dessas mulheres que não têm um advogado constituído. A segunda atribuição é, nos casos em que a legislação permite o aborto, o que chamamos de aborto legal, a Defensoria tem o papel de garantir que essas mulheres tenham acesso a esse direito, que está ligado ao direito à saúde.

AzMina: Por que vocês se pronunciaram na audiência no STF na ação que questiona a criminalização do aborto?

Ana: A Defensoria Pública aqui em São Paulo faz a cada dois anos conferências ouvindo a população, movimentos da sociedade civil e das mulheres. Nelas, recebemos a demanda de que a Defensoria deveria trabalhar, estudar e se comprometer com a descriminalização do aborto no Brasil. A partir dela, o Núcleo estudou o tema e analisou as legislações internacionais e comparadas. Concluímos que a criminalização penal do aborto é inconstitucional. Além de ferir tratados internacionais [dos quais o Brasil é signatário]. Por isso, o Núcleo se manifestou junto ao STF nesse assunto.

Não é uma questão de opinião, é uma questão técnica de que a Constituição e os tratados internacionais entendem que não cabe à justiça criminal dar a resposta para uma mulher que interrompe a sua gestação por qualquer motivo que seja.

Como um caso individual de uma mulher acusada da prática de aborto pode nunca chegar ao STF, pode dar a impressão que esse crime foi,  de certa forma, socialmente descriminalizado, que ele é tolerado. Mas essa não é a realidade que vemos no dia a dia junto ao sistema de justiça criminal.

AzMina: Por que aborto não deveria ser tipificado como crime? 

Ana: São muitos os argumentos, como pudemos ver lá na audiência. Por conta do nosso papel na defesa dessas mulheres, nosso objetivo foi trazer um retrato delas e como o sistema de Justiça criminal as enxerga. Quando a gente fala de descriminalizar o aborto, estamos querendo que a mulher que pratique o abortamento não seja responsabilizada criminalmente por isso.

Então, o que a gente quis mostrar é que a resposta do sistema criminal para essas mulheres é desproporcional e que o sistema criminal não tem instrumentos, para de fato afirmar de forma justa, dentro do processo penal, que aquela mulher praticou aquele crime. Isso porque não tem perícia que demonstre isso, porque as provas trazidas nesses processos são via de regra ilegais.

Quando o Estado acusa uma pessoa de um crime, é preciso ter regras e um processo que garanta o direito de defesa dessa pessoa. Essa regra precisa ser respeitada para que, ao chegar lá no fim do processo, a sentença seja justa.

AzMina: Foi isso que você constatou nos processos que analisou em 2017?

Ana: Analisamos cerca de 50 casos e fizemos 30 pedidos de habeas corpus. Detectamos que em torno de 70% dos casos, a notícia desse crime veio de uma violação de um dever legal e ético de um profissional de saúde denunciando essa mulher. Há casos em que a própria pessoa disponibilizou documentos sigilosos para a polícia. São essas falas, esses depoimentos e esses documentos que são subsídios para levar adiante esse inquérito policial e posterior denúncia do Ministério Público e aí iniciando uma ação penal contra essas mulheres.

São processos que já nascem viciados e errados e, portanto, não deveriam nem existir. Ou se aquilo que ensejou a denúncia foi esse documento sigiloso, ele deveria ser retirado e desconsiderado do processo. Mas a gente sabe que normalmente é isso que é usado como argumento forte e o indício dessa materialidade, da existência de um crime.

AzMina: Então não há provas suficientes para incriminar essas mulheres?

Ana: Estamos falando de um crime muito específico, porque abortos acontecem espontaneamente todos os dias. Os índices são de em torno de 20% de abortamento, especialmente em primeiras gestações. Então quando a gente fala que uma pessoa vai ser criminalizada é por ter provocado esse aborto. E aí entra uma outra questão: além das provas serem viciadas, é esse elemento que demonstre o que provocou o aborto.

Em muitos processos a gente verifica que não tem qualquer elemento comprobatório nesse sentido. Ou existe um elemento, mas ele não é suficiente para causar essa consequência. Seria a mesma coisa que eu falar: masquei um chiclete e abortei. Não há perícias técnicas para comprovar isso, então quando há um suposto elemento, que podem ser restos de medicamentos, ele não é periciado.

AzMina: Quais são as provas apresentadas? 

Ana: As provas vistas nos processos costumam ser: a confissão da própria mulher de que praticou o aborto e casos em que há entrega de restos de medicação que restou no colo do útero, como o Cytotec. São essas duas formas. No primeiro caso, a revelação da prática do aborto se dá em sigilo, no momento em que a mulher busca atendimento médico e revela que praticou o abortamento para receber o adequado diagnóstico e cuidado. E essa informação é usada contra ela, para puni-la. Ela poderia não revelar, mas aí correria o risco de não ser atendida adequadamente.

AzMina: Qual o perfil dessas mulheres?

Ana: São mulheres jovens, com pouca escolaridade e renda. E, apesar disso, o que observamos é a fixação de valores altos de fianças pelos juízes. Via de regra, a fiança tem que ser fixada levando em consideração não só o crime, mas também as condições da pessoa. É o contrário do que se vê normalmente em casos de com violência doméstica, que há uma tendência em se fixar valores mais baixos. Isso decorre da forma como socialmente o aborto é enxergado e estigmatizado. É uma forma de punição social das pessoas que lidam com aquela mulher ao longo de todo esse processo, tanto na saúde quanto na Justiça.

AzMina: Você comentou que na maioria dos casos os denunciantes são profissionais da saúde. Como fica a questão do sigilo médico?

Ana: Os maiores denunciantes são os profissionais de saúde, entre eles médicos, enfermeiros e assistentes sociais. Eles não podem denunciar por dever legal e ético de sigilo. Há sempre uma dúvida sobre quando esse dever pode ser quebrado, e isso só é permitido quando há o risco da futura prática de uma violência. Por exemplo: estou em uma sessão de terapia e informo que vou sair dali e vou matar tantas pessoas. Esse é um caso que eticamente é possível a violação do dever.

Isso não está só no código de ética dos conselhos médicos, de enfermagem e de assistência social, mas também há a previsão de um crime de revelação de segredo no código penal. Então estamos falando de uma conduta que também é rechaçada pela política criminal do estado, está no mesmo código que criminaliza o aborto. Mas muitas vezes é compreendido como um dever ou o profissional prefere praticar esse crime para punir alguém. A maioria dos casos são flagrante, com aquele perfil de profissional [de saúde] que comunica a polícia e o flagrante da mulher acontece enquanto ela ainda no equipamento de saúde ou logo que ela recebe alta.

AzMina: E como os processos se desenrolam na maioria dos casos?

Ana: Por conta do tipo de crime e do perfil das mulheres, elas têm direito a um benefício que chama “suspensão condicional do processo”. O processo fica suspenso por dois anos e durante esse período a mulher tem que cumprir condições [a mulher é obrigada a comparecer mensalmente a um fórum criminal durante dois anos, fica proibida de frequentar alguns locais, como bares, e de mudar de endereço sem notificar a Justiça].

Se ela cumprir as condições, ao final de dois anos tudo é arquivado e não há uma declaração de culpa, ela não é condenada pela prática de um crime. Se ela não aceitar o benefício, é dada continuidade no processo e ao final ela será julgada por um júri formado por cidadãos comuns.

Mas mesmo esse benefício é, de alguma forma, uma responsabilização. As pessoas costumam dizer que “o crime de aborto não dá em nada, que a mulher não vai presa”, mas ela é social e moralmente responsabilizada por aquilo. Só que estamos falando de uma responsabilização baseada em provas ilegais ou sem provas. Isso é um grande problema.

AzMina: Os homens responsáveis pela contracepção não são citados nos processos?

Ana: Ao serem inseridas no sistema criminal, não havia indícios de homens nos casos. Quem seriam os genitores, se esses homens tiveram alguma participação. Não havia a preocupação no inquérito policial, na fase de investigação, se esse crime ia além dessa mulher. O foco era a mulher, e uma vez que ela estava sendo responsabilizada e criminalizada, o inquérito se encerrava.

AzMina: Qual a importância da decisão do Tribunal de Justiça em condenar um hospital a pagar indenização a uma mulher acusada de abortar? 

Ana: É uma decisão importante, porque é um reconhecimento do tribunal. Nos casos de habeas corpus, dos cinco que ganhamos, quatro foi por falta de materialidade, ou seja, não havia prova de que o aborto foi provocado. Em apenas um caso foi julgada ilegalidade da prova. Ou seja, os juízes não têm reconhecido que essa prova decorrente da quebra de sigilo é uma prova ilícita. A decisão mostra que, de fato, a conduta do profissional de saúde foi inadequada. É um recado e um precedente importantes, porque é um reconhecimento do judiciário de que deve se guardar o segredo sob pena de responsabilização.

AzMina: E essa não era uma prática que se tinha antes?

Ana: A gente ainda vê uma certa resistência em anular um processo, de reconhecer que aquele processo todo está viciado por conta daquela conduta ilegal e inadequada. Além da consulta do Cremesp [Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo], nos consultamos os conselhos de classe dos outros profissionais e eles foram unânimes em nos dar o parecer de que aquilo era ilegal.

AzMina: Esse tema é tratado para além do judiciário?

Ana: Essa ação que pauta a descriminalização ainda está em andamento, mas em paralelo vários projetos de lei e emendas à Constituição têm sido propostos na tentativa de desconstruir os argumentos usados para descriminalizar. Tem uma proposta de emenda constitucional para inserir o direito à vida desde a concepção e também um projeto de lei para mudança do código civil nesse sentido. Há projetos de aumento da pena para quem vende ou faz propaganda de abortivo, e estamos falando de uma pena que já é alta.

Por Thais Folego 

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