“O Estado trata o aborto como uma piada”, diz médico especialista no assunto

19 de setembro, 2019

Jefferson Drezett, que dirigiu por mais de 20 anos o serviço de aborto legal do Pérola Byington, fala sobre aborto legal e ilegal no Brasil 

(AzMina, 19/09/2019 – acesse no site de origem)

“Os serviços de saúde parecem que escolhem cumprir ou não a lei quando se trata dos direitos humanos das mulheres”. A avaliação é do médico Jefferson Drezett, que tem um olhar bastante crítico sobre a questão do aborto no Brasil. Por 24 anos, ele dirigiu o serviço de aborto legal do hospital Pérola Byington, em São Paulo, referência no atendimento para interrupção de gestação nos casos previstos na lei brasileira (para vítimas de estupro, anencefalia do feto e risco à vida da mulher).

Lá, além de realizar centenas de procedimentos, ele viu mulheres vítimas de estupro vindas de todo o Brasil em busca de ajuda e se pergunta quantas não conseguiram realizar o procedimento em seus Estados e, por isso, tiveram que fazer na clandestinidade. “Não há sentido que uma mulher brasileira, e eu estou pensando principalmente nas mulheres pobres, tenham que recorrer a um serviço clandestino que coloque sua saúde em risco, porque o Estado brasileiro não responde no seu dever”, afirma.

Em entrevista à Revista AzMina, Jefferson fala sobre a situação do atendimento ao aborto legal no Brasil, os riscos do aborto clandestino e explica quais são os procedimentos mais usados para o aborto seguro no mundo e aqui.

AzMina: Qual a importância do serviço de aborto legal no Brasil?

Jefferson Drezett: A gente tem uma lei fortemente restritiva, mas não é absoluta. A legislação tem duas previsões legais para interrupção de gestação: nenhuma mulher deve morrer pela gestação e em caso de violência sexual, isso tá previsto na lei penal brasileira. E mais recentemente a gente teve a decisão do Supremo [Tribunal Federal] de que também não há crime de aborto no caso de anencefalia.

Essas situações são exceções, mas são um direito das mulheres. É a lei, portanto todas as mulheres têm todo direito de acessar serviços públicos de saúde para interromper a gestação de maneira segura, com atendimento adequado e humanizado. Eu entendo que isso é fundamental, é uma questão de cumprimento da lei.

E contar com serviços, no plural, para que essas mulheres tenham acesso a isso é fundamental para que elas não acessem os serviços de saúde clandestinos para fazer o aborto. Qual o sentido da lei permitir que as mulheres façam o aborto nessas circunstâncias mas não dar para elas a possibilidade de fazer?

AzMina: Quando recorrem ao aborto clandestino, as mulheres estão sempre em risco?

Drezett: O aborto clandestino pode ser duas coisas completamente diferentes. Pode ser o que é feito com um grau de segurança muito bom, mas que é muito custoso. E a maioria das brasileiras, se não tem esse recurso econômico, recorre ao aborto praticado da maneira mais precária, menos técnica possível, que a gente vai chamar de o aborto praticado em condições inseguras.

Não há sentido que uma mulher brasileira, e eu estou pensando principalmente nas mulheres pobres, nas mais vulneráveis pela sua condição de pobreza, que elas  tenham que recorrer a um serviço clandestino que coloque sua saúde em risco, porque o Estado brasileiro não responde no seu dever.

A gente já tem um mortalidade materna tão alta por aborto clandestino no país e a gente não consegue equacionar isso mesmo no caso desses três permissivos legais. O Estado tem se omitido enormemente em seu dever.

AzMina: Para os casos de aborto legal, basta a mulher procurar o hospital? Há relatos de que não é tão fácil assim.

Drezett: O Código Penal, artigo 128, que fala sobre aborto quando há risco de morte e em caso de estupro, é uma lei de 1940. Ou seja, o Estado brasileiro já teve 80 anos pra resolver essa situação. Nesses 80 anos, quase não houve esforço do Estado em garantir a essas mulheres que elas pudessem acessar esse serviço. O Estado trata essa questão como uma piada.

As mulheres que vão buscar por um serviço de saúde, na maioria das vezes, não vai encontrar resposta para seu direito de receber esse atendimento. E cabe apenas ao serviço de saúde corresponder a esse direito, não é a Polícia, nem o Ministério Público. Mas os serviços de saúde não estão oferecendo esse serviço.

A gente sabe que são muito poucos os serviços brasileiros que têm garantido atendimento para essas mulheres. Aí começa uma nova crueldade.

Elas têm que completar vias de acesso que muitas não conseguem. Eu fiquei muitos anos no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, e vi mulheres se deslocando de outros estados do país porque não conseguiram atendimento no estado delas. Do Paraná, Rio, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Amazonas, Bahia… Enfim, quase todos os estados brasileiros. Agora você imagina se essa peregrinação é viável para todas as mulheres?

Ou se existe alguma justificativa cabível ética ou legal  para um estado inteiro simplesmente se omitir do seu dever, não fazer o atendimento.

Isso faz parecer que os estados brasileiros não precisam prestar conta para ninguém. Um serviço de saúde nega o atendimento e fica por isso mesmo, não há nenhum tipo de investigação, de punição, advertência. Os serviços de saúde parece que escolhem cumprir ou não a lei quando se trata dos direitos humanos das mulheres. Isso é um verdadeiro equívoco que se mantém no Brasil sem que ninguém coloque um ponto final nesse tipo de circunstância.

AzMina: Para fazer aborto é necessária uma estrutura específica? Por que é tão difícil ter esses centros de referência?

Drezett: O  necessário para oferecer o aborto legal de forma segura e com alta qualidade técnica de atendimento não é algo que não possa ser feito pelo serviço de saúde pública brasileiro. Porque a gente vai envolver basicamente dois métodos para a maioria dos casos.

O uso do Misoprostol, que a gente chama de aborto medicamentoso, Cytotec é o nome fantasia. E a gente tem o Misoprostol disponível no Brasil, ou seja os serviços de saúde podem requerer a compra dele. E já é usado nos hospitais para induzir o parto, para aborto retido e óbito fetal. Não é uma medicação de alto custo.

A outra técnica é a aspiração manual intra uterina (AMIU), que há décadas está recomendada pelo Ministério da Saúde como a melhor maneira para tratar o aborto incompleto, retido e também os casos legais. Também não é um método que cabe apenas para o aborto legal, cabe para outras formas de tratamento.

Então veja bem, o restante é aquilo que o hospital tem: leito, centro cirúrgico, anestesia, atenção de enfermagem e nutrição. O hospital não tem que ter uma tecnologia em especial ou um processo especial para realizar o aborto legal. Isso pode ser feito por um hospital de menor complexidade sem nenhum problema. A gente nem pode dizer que os nossos hospitais não estão tecnicamente preparados.

AzMina: Como é feito o aborto legal no Brasil?

Drezett: Vai depender do tempo de gravidez da mulher. A aspiração intra uterina é um procedimento muito seguro, mas só pode ser feita até a 12ª  semana de gravidez. Depois disso, ela começa a se tornar difícil e sujeita a complicações. Entre 12 e 14 semanas, os médicos que se sentirem tecnicamente confortáveis podem fazer. Mas de uma maneira geral, o Ministério da Saúde limita a aspiração intra uterina até 12 semanas.

Para gestações com mais de 12 semanas essa técnica não é mais possível. Aí o Misoprostol que passa a ser o método recomendado.

Antes de 12 semanas, uma mulher  pode escolher se prefere aborto por aspiração ou por Misoprostol. Geralmente a gente vai recomendar com medicamento abaixo de 8 ou 9 semanas. Tem gente que pode fazer sem nenhuma necessidade de intervenção do serviço de saúde, a gente vai só auxiliar. Na maioria dos países desenvolvidos, é feito de maneira domiciliar.

No entanto, as mulheres que recorrem ao aborto em caso de estupro têm uma ansiedade muito grande em resolver a situação o mais rápido possível, da maneira mais confortável possível, sem dor. Isso é completamente compreensível e nessa medida elas acabam escolhendo pela aspiração intrauterina, porque é um método muito rápido. É feito pela manhã, no almoço ela pode ir pra casa.  Não tem dor, recebe anestesia, é muito seguro e tem ótima recuperação.

Se ela fosse fazer uso do Misoprostol, ela seria internada, porque não pode uso domiciliar [no Brasil], para fazer uso do medicamento, talvez ficar uns dois ou três dias no hospital. E o processo é mais doloroso porque envolve cólica e sangramento. Mas eu repito: escolher um ou outro método é um direito da mulher quando esse método é possível.

AzMina: É comum ouvir que o Misoprostol é perigoso, que causa aborto incompleto e mata mulheres. Isso é verdade?

Drezett: Eu vejo essa visão e em certa medida é um equívoco. Nos anos 80, quando o Misoprostol era vendido no Brasil [vendido com o nome comercial de Cytotec, era um remédio indicado para o tratamento de doenças gastrointestinais], existe uma tese do professor Maurício Viggiano que mostra claramente que nesse período em que o remédio foi acessível para as mulheres comprarem, caía enormemente as complicações por aborto.

Então a primeira coisa que a gente tem que dizer: o Misoprostol quando chegou ao Brasil, primeiro de maneira legal com o Cytotec, e agora de maneira clandestina, ele foi responsável por uma dramática, a palavra é essa, redução de complicações por aborto inseguro. As mulheres pararam de usar outros métodos perigosos, como inserir coisas no útero, para fazer uso do Misoprostol. E ainda que fosse sem orientação médica, ele ainda era muitas vezes menos perigoso. Isso é um fato.

Agora o Misoprostol pode ser usado por todas as mulheres indiscriminadamente e sempre na mesma dose? A resposta é não.

AzMina: Quem não pode usar?

Drezett: Por exemplo, a dose que a gente habitualmente recomenda para uma mulher de 8 semanas gestacional é de de 800 microgramas. São 4 comprimidos  que podem ser colocados na vagina ou embaixo da língua (existem vias diferentes de utilização e com características de utilização). Já para uma mulher que vai fazer um aborto legal de 14, 15 ou 16 semanas a dose recomendada não é de 800 microgramas. São 2 comprimidos.

Não dá para dizer que as mulheres sempre vão escolher a dose correta [em um aborto clandestino]. E como elas fazem essa escolha? Elas fazem por recomendação de uma amiga. Não têm um acompanhamento médico, elas não têm acesso a serem orientadas por um serviço de saúde. Porque é ilegal e isso complica muito as coisas.

Outro aspecto importante, embora não seja muito comum: existem mulheres que não podem usar o Misoprostol. Algumas com doenças cardíacas não deveriam usar, ele pode criar alguma instabilidade na pulsação cardíaca dependendo do tipo de problema. Mulher que tem distúrbio de coagulação até pode usar, mas é preciso cuidado e acompanhamento. Existem outras situações de cuidado especial.

Como é que as mulheres vão poder ter acesso a esse critério sem ajuda de um médico? Sem um serviço de saúde?

AzMina: E por que você acha que existe essa visão do Misoprostol como perigoso?

Drezett: O Misoprostol não é um procedimento sem riscos, mas está longe de ser ruim paras as mulheres. O que acontece é que o aborto com o Misoprostol não vai acontecer em cinco minutos. É um processo que pode ser que demore algum tempo, sem nenhum problema, desde que não tenha um sangramento abundante. Muitas vezes o que acontece é que as mulheres são avaliadas pelo serviço de saúde no meio desse processo.

Por exemplo, pode levar dois dias para o aborto acontecer, mas ela é avaliada no final do primeiro dia, porque ela está com dor e procura o hospital. O aborto ainda não está completo e aí o serviço de saúde interna essa mulher e faz a curetagem. Vem a ideia do aborto incompleto. Mas se aguardasse o tempo minimamente adequado para o processo de aborto, uma grande parte desses abortos seria de forma completa sem intervenção. Claro que isso é válido para uma mulher que não está tendo sangramento enorme, e as cólicas estão sendo controladas.

Os riscos de sangramento exagerado  variam entre 0,1 a 2% dos casos. É um risco muito pequeno.

E tem um outro problema, que é comum com médico e jornalista: o caso que deu certo não é reclamado. O que vai procurar o serviço de saúde, que chama atenção, é o que deu errado. Mas a verdade é que a maioria dos casos não vai passar por esse processo.

AzMina: Pode acontecer falha?

Drezett: A falha depende de algumas coisas: do protocolo que utiliza e por quanto tempo usa. Se for considerar as pesquisas internacionais, de uma maneira geral, o aborto com o Misoprostol abaixo de 8 semanas, quando usa uma dose só, vai funcionar em média para 85% das mulheres. Significa que de cada 10, em uma ou duas a medicação vai falhar. Agora, ela pode usar uma nova dose, pra ver se funciona? Claro que pode, pode usar uma segunda dose, é o que se faz nos países em que o aborto é legal. Não é que ela tem uma chance só, a medicação pode ser repetida e se for repetida, a taxa de sucesso é maior.

O Misoprostol não é uma garantia de que vai funcionar. E a chance de falhar vai ser maior quanto menos doses essa mulher tiver disponível da medicação para tomar.

Quando a medicação é clandestina e cara, coisa de 800 a 1000 reais quatro comprimidos, como a gente vai imaginar que uma mulher que não tem recursos consiga comprar três doses? Frequentemente é um dinheiro que as mulheres mais pobres não têm.

AzMina: E dano ao feto, é possível?

Drezett: Quando acontece a falha abaixo de nove semanas, existe sim uma possibilidade, que não está exatamente muito clara, de que o Misoprostol possa causar dano fetal, principalmente a síndrome de moebius. Mas não se consegue exatamente quantificar isso, por casa da clandestinidade. Não há muito sentido falar que o Misoprostol é perigoso e causa dano fetal para alguém que está interrompendo a gestação.

AzMina: Se fala disso para os casos em que o aborto falha e a mulher segue com a gravidez.

Drezett: Então, pra quem não consegue ou vai começar o procedimento, tem que estar claro isso. Se começa o procedimento e não funciona e, por qualquer razão, ela muda de ideia e não quer mais interromper a gestação, deve estar ciente dessa possibilidade. É uma escolha que essa mulher deve fazer.

Por Helena Bertho

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