A expectativa era imensa. Milhares de mulheres que haviam passado a noite em vigília, num frio abaixo de zero, seguravam umas nas mãos das outras aguardando os últimos votos. Quando o resultado saiu, foi uma explosão de alegrias e lágrimas: elas pularam, gritaram, se abraçaram. Viviam a emoção de ver concretizado o fruto de décadas e décadas de luta pela legalização do aborto na Argentina.
(Blog do Sakamoto, 15/06/2018 – acesse no site de origem)
Do lado de cá, quando vi o resultado da votação da lei (que permite o aborto até a 14ª semana de gestação) na Câmara dos Deputados – apertado, 129 votos a favor e 125 contrários – experimentei um misto de sensações que dificilmente acontecem ao mesmo tempo. Chorei e sorri com uma intensidade quase que inexplicável. Imprevisível. A cada imagem que chegava de lá, a certeza de que havia milhares de mulheres aguerridas, que, assim como nós, lutavam pelo direito básico, essencial, de serem donas de seus próprios corpos.
As nossas sociedades, argentina e brasileira, estruturam-se por mecanismos de controle dos corpos das mulheres.
A violência física, em especial o estupro e o feminícidio, servem para manter-nos em posições hierarquicamente inferiores, assim como a legislação. É por meio de leis extremamente restritas, como as que dizem respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, que as mulheres têm retirada sua autonomia. E, recentemente no Brasil, por meio de laqueadura forçada pela Justiça no interior de São Paulo – uma prática que remonta à eugenia.
Mas, nesta quinta (14), um dia histórico para as mulheres na América Latina, as argentinas conseguiram dar um basta em parte desse ciclo de exploração e dominação. Torço para que o Senado de lá siga o clamor das ruas e aprove a legalização. Diz o presidente Mauricio Macri que irá sancioná-la, apesar de não defendê-la – uma lição adicional, aliás, já que as argentinas nos mostram que a todo momento a luta é possível, mesmo sob um governo conservador de fato eleito.
Acompanhei a votação e fiquei surpresa com o nível da argumentação. Aquelas e aqueles a favor da lei diziam o óbvio: que legalizar o aborto é uma questão de saúde pública porque essa prática já existe e continuará existindo caso não haja uma regulamentação a respeito. Assim, torná-la legal significa simplesmente tirar mulheres da clandestinidade, do risco de morte por situações insalubres de interrupções voluntárias de gravidez.
Nem uma a menos, bradavam.
Mas as ponderações contrárias que eu vi eram respeitosas com o campo oposto. Uma das deputadas se colocou como feminista, afirmou que era a favor da igualdade de gênero, mas que, para ela, a vida começava na concepção e, portanto, votaria contra. Uma atitude condizente com uma arena democrática.
Isso me fez pensar em como estamos rebaixados no Legislativo no Brasil. Aqui, um país onde o Estado é teoricamente laico, argumentos bíblicos têm sido responsáveis por apoiar a aprovação de projetos de lei. Por exemplo, na Bahia, um representante parlamentar argumentou que gênero não podia ser uma diretriz do Plano Estadual de Educação porque Eva tinha nascido da costela de Adão, sem pensar nas questões de saúde pública e sem admitir que essa era a sua crença pessoal, e não a de toda a sociedade baiana para quem ele estava legislando.
Assim como na Argentina, o aborto aqui existe. Todo mundo conhece alguma amiga, irmã, tia, sobrinha, vizinha – quando não a si mesma – que teve que recorrer a alguma forma de interromper voluntariamente uma gestação. Dados de 2017 mostram que são, pelo menos, 500 mil abortos por ano no Brasil. E a cada um minuto, uma mulher faz aborto clandestino no país, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Só que esse aborto é estratificado por classe e raça: quem tem mais dinheiro consegue acessar clínicas melhores e realizar o procedimento com segurança. Quem não tem, pode morrer.
Nesses tempos de incertezas do que será o futuro da democracia no país, parecemos cada vez mais longe de uma vitória como a que ocorreu na Argentina. Mas tomara que esses ventos do Sul soprem por aqui, seja nas ruas, seja para acompanhar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que o PSOL e o Instituto Anis mobilizaram no Supremo Tribunal Federal e que será debatida em 3 de agosto. A
ação pede que o aborto realizado por vontade da mulher, não importando a razão, nas 12 primeiras semanas de gravidez não seja mais crime.
Como afirma o slogan da campanha na Argentina, educação para decidir, anticoncepcionais para não abortar, aborto legal para não morrer.
Maíra Kubik Mano, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, é professora da pós graduação em Estudos Interdisciplinas sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia