10 perguntas para as advogadas que levaram o direito ao aborto ao STF

08 de março, 2017

Luciana Genro, Luciana Boiteux, Gabriela Rondon e Sinara Gumieri responderam ao JOTA

(Jota, 08/03/2017 – acesse no site de origem)

Após ter sido protocolada no Supremo Tribunal Federal (STF) a primeira ação que pede a legalização ampla do aborto, o JOTA fez dez perguntas para as advogadas Luciana Genro, Luciana Boiteux, Gabriela Rondon e Sinara Gumieri – que assinam conjuntamente o texto.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo PSOL pede a liberação da interrupção da gravidez até 12 semanas de gestação. O partido questiona a criminalização da prática pelos artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940.

“A ação é proposta neste momento também por uma constelação de fatores. A Pesquisa Nacional do Aborto, em dezembro de 2016, mostrou que meio milhão de mulheres fez aborto no Brasil em 2015: uma mulher por minuto abortou em condições ilegais e inseguras, colocando sua vida e saúde em risco”, explicam.

Gabriela Rondon e Sinara Gumieri são advogadas da Anis – Instituto de Bioética e doutorandas em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Coordenado pela professora Débora Diniz, o instituto foi responsável por levar ao STF o debate sobre aborto terapêutico de fetos anencéfalos e, mais recentemente, nos casos de mulheres infectadas com o vírus da zika.

Luciana Genro e Luciana Boiteux são filiadas ao PSOL. Boiteux é professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi candidata a vice-prefeita do Rio de Janeiro na chapa de Marcelo Freixo em 2016. Além de advogada, Genro é uma das fundadoras da legenda.

Ao longo das dez perguntas, as advogadas falam sobre o momento escolhido para debater a interrupção da gravidez no Supremo, argumentam sobre as implicações jurídicas da ação e observam os desafios presentes da discussão do tema. Confira:

1 – Quais os fundamentos da ação? Por que neste momento e por que apenas até a 12ª semana?

O principal argumento da ação é que direitos fundamentais das mulheres são violados pela criminalização do aborto, especialmente os direitos à dignidade e à cidadania. A violação ao preceito fundamental da dignidade é entendida como a negação à autonomia da mulher para tomar suas decisões, e a violação à cidadania, como o impedimento de ter as condições necessárias para viver uma vida digna. Essas condições incluem não sofrer discriminação de gênero, racial e de classe (são as mulheres negras, indígenas, nordestinas e pobres as que têm mais direitos violados pela criminalização do aborto); não sofrer tortura e tratamentos desumanos, causados pela negação de atendimento a uma necessidade de saúde como é o aborto; ter acesso a serviços de saúde e às condições para decidir se, quando, como e com quem ter filhos, em respeito ao seu direito ao planejamento familiar.

O pedido se centra nas 12 primeiras semanas por várias razões. A primeira é porque essa é a experiência das mulheres. Estudos internacionais mostram concentração da realização de abortos até a 13ª semana. A segunda é porque é um procedimento muito seguro dentro desse tempo gestacional, com baixo risco de complicações que exijam atendimento hospitalar. A terceira é porque esse é o principal marco temporal de aborto legal seguido internacionalmente, nas legislações de Alemanha, Cidade do México (México), Espanha, França, Grécia, Itália, Moçambique e Uruguai, dentre outros.

A ação é proposta neste momento também por uma constelação de fatores. A Pesquisa Nacional do Aborto, em dezembro de 2016, mostrou que meio milhão de mulheres fez aborto no Brasil em 2015: uma mulher por minuto abortou em condições ilegais e inseguras, colocando sua vida e saúde em risco. Em janeiro de 2017, os efeitos da lei da mordaça imposta pelo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, lançaram nova ameaça para os direitos reprodutivos das mulheres no mundo. Neste 8 de março, as mulheres se organizam para marchar juntas e para além das fronteiras contra retrocessos e direitos violados historicamente. Se a pauta sempre foi urgente, agora ela se torna inadiável.

2 – A decisão da Primeira Turma, no ano passado, foi um sinal de que o Supremo pode avançar sobre esta questão?

Essa não foi a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal deu sinais de estar preparado para o debate sobre o aborto. Na ADI 3.510, que analisou a lei de biossegurança, em 2008, e na ADPF 54, sobre aborto em caso anencefalia, em 2012, já havia importantes precedentes sobre como interpretar a questão do aborto a partir de uma análise de direitos fundamentais. A decisão da Primeira Turma em novembro de 2016, embora sem eficácia contra todos e efeito vinculante, consolida a partir de decisões anteriores um passo na direção da leitura constitucional de que a criminalização do aborto viola direitos fundamentais das mulheres, especialmente o direito à autonomia, o direito à integridade física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos e o direito à igualdade. A ADPF proposta neste momento dialoga com todos esses precedentes, centrais para o tema.

3 – Há muita crítica (houve em relação ao processo relatado pelo min Barroso) de que este tema deveria ser decidido pelo Congresso. Como vocês analisam este argumento?

As críticas partem de uma incompreensão sobre o que significa levar a sério os direitos fundamentais das mulheres. As cortes constitucionais são o local certo para se levar demandas sobre direitos constitucionalmente previstos, especialmente quando se trata de direitos que precisam ser contra majoritariamente protegidos. Reva Siegel, professora de direito em Yale e estudiosa da constitucionalização do direito ao aborto, destaca que, na perspectiva da pesquisa constitucional comparada, quando o aborto chega às cortes constitucionais, já está consolidado como um conflito constitucional no debate político, então não há inovação das cortes ao reconhecer a questão. O entendimento de Siegel vale para nós aqui: a moral hegemônica representada na política institucional brasileira hoje mantém e reforça a criminalização do aborto, fazendo com que o questionamento sobre a incompatibilidade da lei penal com os direitos garantidos às mulheres segundo a Constituição Federal se torne ainda mais importante dentro da Corte Suprema, em uma democracia comprometida com direitos fundamentais.

4 – O Congresso reagiu fortemente a duas decisões recentes do Supremo (Vaquejada e HC do aborto). Vocês não enxergam o risco de o Congresso reagir também a esta possível decisão?

Sim, é bastante possível e até mesmo esperado, pela mesma razão exposta acima: há uma moral hegemônica, enraizada na política institucional, que colabora para manter a criminalização do aborto ou inclusive para acirrá-la e ameaçar as hipóteses de aborto legal hoje existentes. Mas é também por isso que o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema se torna ainda mais importante, para que o debate já posto no cenário político possa ser amadurecido do ponto de vista constitucional.

5 – Como enfrentar o argumento daqueles que defendem a ideia de que o feto tem direito à vida e que a interrupção seria uma violação ao direito à vida?

A principal resposta é que direitos fundamentais precisam ser interpretados em uma coerência sistemática, não só em face uns dos outros, dentro do texto constitucional, como dentro de uma coerência histórica de interpretações da corte. Nesse tema, há uma coerência histórica crucial do Supremo Tribunal Federal em reconhecer diferentes estatutos de proteção de direitos a embriões e fetos ou a pessoas nascidas, conforme se observa nos precedentes da ADI 3510, da ADPF 54 e do HC 124.306. Afirmar isso não significa dizer que não se reconheça valor a embriões ou fetos – pelo pertencimento à espécie humana, embriões e fetos têm valor intrínseco a ser preservado por normativas infraconstitucionais. Mas o próprio Supremo já decidiu, nos casos citados, que é às mulheres a quem se deve reconhecer direitos fundamentais. Vale lembrar trecho da ementa da ADI 3510, sobre pesquisa com células-tronco embrionárias: “A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana”. Isso nos diz muito sobre como devemos interpretar nossas distintas convicções no tema do aborto.

6 – Qual é a relação desta ação com a ADI/ADPF 5581, movida em agosto pela Anis e a Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep), que pede a liberação da interrupção da gravidez em caso de gestantes infectadas pelo vírus Zika?

A ação do zika (ADI 5581) e a ação proposta pelo PSOL têm em comum o fato de incluírem uma demanda sobre aborto, por compartilharem uma compreensão quanto à violação dos direitos das mulheres pela criminalização do aborto. Vale lembrar que a ADI 5581 busca respostas urgentes – e ainda pendentes – para direitos de mulheres e crianças violados no contexto da epidemia do zika, e seus pedidos incluem acesso à informação sobre a epidemia e a métodos contraceptivos amplos, direito ao aborto para mulheres infectadas por zika e vivendo sofrimento mental, e acesso a políticas de proteção social – especialmente o Benefício de Prestação Continuada (BPC) – para crianças com deficiência afetadas pelo vírus zika.

Assim, os pedidos relativos ao aborto permitem entender a diferença entre as duas ações: a ação do zika demanda o reconhecimento de mais uma exceção (além de estupro, risco de vida e anencefalia) à criminalização do aborto, só para casos em que a saúde mental das mulheres esteja ameaçada pela epidemia do vírus zika, considerando as consequências ainda em curso, não podemos esquecer, da epidemia no Brasil. Já a ação do PSOL faz um pedido mais amplo, para que o aborto não seja mais crime quando realizado até 12 semanas.

7 – Porque debater a legalização do aborto no Supremo, e não no Congresso?

Essa pergunta é importante porque permite identificar um falso dilema que reproduzimos às vezes sem notar. Uma democracia constitucional saudável exige divisão e controle mútuo de poderes. A uma corte constitucional como o Supremo Tribunal Federal cabe a proteção dos direitos fundamentais e da integridade da Constituição, em especial por meio da defesa de direitos minorias políticas diante de eventuais excessos da maioria. É exatamente dessa responsabilidade contramajoritária que se trata a ação de descriminalização do aborto: proteger direitos das mulheres violados por ação estatal. E não somos nós que dizemos isso: essa é uma afirmação do próprio Supremo ao decidir casos como a ADPF 54 (que garantiu o direito de interrupção da gestação em caso de feto anencefálico), a ADPF 132 (que reconheceu o direito de união estável para casais do mesmo sexo), a ADPF 291 (que retirou menções a práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo do crime de ato libidinoso do Código Penal Militar).

8 – O resultado desta ação poderia abrir espaço para a descriminalização total, mesmo após 12 semanas?

Não temos dúvidas de que uma decisão favorável à descriminalização do aborto é um importante passo em um debate constitucional maduro sobre adequação, necessidade e proporcionalidade do uso do direito penal em matéria de decisões reprodutivas. Na ação recém proposta, estamos seguras quanto à urgência do reconhecimento do direito ao aborto até 12 semanas, que é coerente com demandas das mulheres, seguro para a saúde delas e dialoga com o principal marco temporal de aborto legal seguido internacionalmente.

9 – Uma vez aprovada, quais seriam as implicações jurídicas de uma eventual ampliação do aborto? Quais seriam os próximos passos?

O primeiro passo após uma ampliação do direito ao aborto seria a regulamentação e organização de serviços de aborto legal e saúde sexual e reprodutiva para as mulheres, a exemplo do que já existe para os atuais casos de aborto legal (estupro, risco de vida e anencefalia). Parece ser mais do mesmo, mas não é: a descriminalização do aborto teria (e terá) um importante efeito de reduzir o estigma associado à sexualidade, à saúde e as decisões reprodutivas das mulheres. Isso implica em políticas de saúde de maior qualidade, em profissionais mais preparados para ouvir e acolher as necessidades das mulheres, em uma sociedade mais responsável com a educação sexual necessária para a realização do projeto de vida de todas as pessoas.

Uma evidência disso está no próprio funcionamento dos serviços de aborto legal atualmente existentes: a criminalização do aborto pesa inclusive sobre esses casos. O resultado são serviços escassos, equipes pouco preparadas, mulheres tratadas sob permanente suspeição e enfrentando barreiras para acessar abortos legais.

10 – Quais são os efeitos da permanência da criminalização do aborto no país? A lei penal é bem sucedida na tentativa de evitar que as mulheres realizem abortos?

Não, a lei penal não é capaz de impedir que mulheres façam abortos, nem no Brasil nem em qualquer lugar do mundo. A Pesquisa Nacional do Aborto 2016 mostrou que, só em 2015, mais de meio milhão de mulheres realizaram um aborto. A cada minuto, uma mulher brasileira toma a decisão reprodutiva de não seguir com uma gestação e, em função da criminalização, o procedimento de interrupção frequentemente ocorre em condições inseguras e sob ameaça de persecução criminal, agravadas ainda pela desigualdade racial, econômica e regional. A única eficácia garantida pela criminalização do aborto diz respeito a graves violações de direitos fundamentais das mulheres.

Precisamos aprender com a experiência de países que, contrariando o senso comum no tema, legalizaram o aborto e observaram diminuição do número de interrupções de gestação, como a França. Pode parecer contraditório, mas tudo é explicado e comprovado pela redução do estigma associado ao aborto e à sexualidade, e seus efeitos sobre políticas públicas. Levar a sério a prevenção de gestações não planejadas e, consequentemente, a redução do número de abortos exige educação sexual integral nas escolas, acesso a métodos contraceptivos adequados para cada mulher, atendimento de qualidade às necessidades de saúde das mulheres – incluindo o amplo direito ao aborto –, combate à violência sexual e fortalecimento da igualdade de gênero. Por tudo isso é que a ação do PSOL de descriminalização do aborto é uma iniciativa pela dignidade e cidadania das mulheres.

Por Mariana Muniz/JOTA Brasília

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