(Folha de S.Paulo) É oportuna a iniciativa, em estudo no Ministério da Saúde, de orientar mulheres decididas a fazer aborto sobre riscos do procedimento e dos métodos de realizá-lo.
Se prosperar, porém, não será sem atrito. Como a interrupção da gravidez é crime, com poucas exceções previstas (como nos casos de estupro e risco para a gestante), o poder público estaria exercitando certa conivência com atos que a lei expressamente condena.
À rigidez formalista desse argumento se contrapõe uma realidade dolorosa, incontornável e, por vezes, fatal. Estima-se que um sétimo das mulheres em idade reprodutiva já tenha recorrido ao aborto; variam as cifras sobre as que pagam com a vida pela decisão.
No Uruguai, onde a prática é igualmente proibida, a norma de prestar orientação sobre o aborto foi adotada em 2004. Procura-se esclarecer a gestante sobre os riscos do aborto, oferecendo-lhe um tempo para reflexão. Apresenta-se, por exemplo, a possibilidade de entregar o bebê para adoção.
É de ressaltar que correntes de opinião contrárias ao aborto tendem a ser refratárias também a essa alternativa de esclarecimento.
Na orientação sobre os métodos menos arriscados para abortar, uma norma técnica detalhada seria crucial para diminuir o peso das convicções pessoais do agente de saúde. Tratando-se de atividade ilegal, não faz sentido o serviço médico prescrevê-la, ainda que extraoficialmente -nem, tampouco, abandonar à própria sorte a gestante inclinada ao aborto.
A divulgação de métodos anticoncepcionais, sobretudo a chamada “pílula do dia seguinte”, assim como o pleno acesso a eles, infelizmente não se generalizou.
Diante dos dilemas morais e éticos envolvidos, a descriminalização do aborto teria de ser precedida por um referendo popular. A iniciativa também poderia contribuir para tornar o debate mais objetivo, afastando-o do simples choque de valores inconciliáveis.
Seja como for, não se tem ainda nem uma coisa nem outra -só a bruta realidade do aborto praticado amiúde, sem assistência.
Considerações de saúde pública devem sobrepor-se à dureza formalista. Na iniciativa sob análise, trata-se de prestar apoio real, a mulheres reais, e não de ignorar tudo isso em nome de prescrições comportamentais que nem todos se dispõem a aceitar.
Acesse em pdf: Reprodução de risco, editorial (Folha de S.Paulo – 12/06/2012)