(Correio Braziliense) A cientista política Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Brasília, assina artigo em que comenta o debate sobre o aborto nas eleições de 2010 e analisa a questão sob os aspectos da descriminalização e da discriminação. Leia na íntegra:
“Vence o preconceito no debate sobre o aborto
O debate sobre a descriminalização do aborto ainda não aconteceu no Brasil. Até este momento, a prática não havia ocupado posição central nos noticiários, no debate político nem nas disputas eleitorais. Quando ganhou a cena na campanha de 2010, apareceu marcada pela oposição entre a defesa e a ofensiva contra ‘a vida’.
Ainda assim, pelo menos duas posições se impuseram. Uma delas define o aborto como problema de saúde pública. Por isso, deve haver política pública para atendimento de mulheres que abortaram ou a ampliação dos casos em que poderia ser realizado pelos hospitais públicos (a legislação atual permite a interrupção da gravidez nos casos de estupro e de risco de vida para a mulher).
Há aqui o reconhecimento de que a criminalização não impede que milhares de mulheres realizem abortos todos os anos, colocando o aborto clandestino entre as principais causas de morte materna.
A segunda posição enquadra o aborto como atentado à vida e à família. É contrária à interrupção da gravidez em qualquer circunstância e se posiciona, em especial, contra a ampliação dos casos em que é permitida por lei. Isso inclui a interrupção da gestação de fetos que não sobreviverão (como no caso dos anencéfalos). É esse entendimento que se impôs à disputa eleitoral, sustentado pela Igreja Católica e pelas igrejas evangélicas.
O peso das igrejas na definição da agenda e na formação das preferências dos eleitores não era esperado. Mas não é só isso que a campanha eleitoral de 2010 expôs. Mostrou que, quando o discurso religioso define os limites, não há debate. A defesa da ‘vida’ sem discutir políticas reprodutivas e desconsiderando o direito das mulheres a ter voz e escolha tem um significado preciso: o reforço a preconceitos que comprometem a defesa responsável da vida e a garantia da autonomia dos indivíduos pelo Estado.
Alguns pontos merecem esclarecimento.
Ser a favor da descriminalização do aborto não significa ser a favor do aborto. A defesa da descriminalização corresponde à defesa de que cabe à mulher decidir se mantém ou não uma gravidez. Nos países em que esse direito existe, há regras que definem os limites e condições socialmente aceitas para sua interrupção (não se pode, por exemplo, realizar aborto em qualquer estágio da gravidez). Mesmo nesse caso, o planejamento e uso de anticonceptivos é o principal recurso: nenhuma mulher deseja realizar um aborto, nenhum Estado defende a rotinização dessa prática. Mas, diferentemente da suposição de que a vida tem o mesmo valor em qualquer circunstância, defende-se a vida da mulher e a autonomia dos indivíduos para decidir.
Isso significa também considerar concretamente as circunstâncias em que uma criança seria criada, caso a gravidez se mantivesse.
A criminalização do aborto restringe a autonomia da mulher. Um dos princípios básicos das sociedades liberais é a igual autonomia dos indivíduos para tomar decisões que lhes concernem, desde que não atente contra a liberdade de outros indivíduos.
Nesse ideário, cabe ao Estado zelar pelo exercício da liberdade de cada indivíduo e por sua propriedade, começando por garantir o direito de cada um a seu próprio corpo. Nas sociedades em que o aborto é crime, esse direito é parcialmente negado a cerca de 50% da população. A defesa da ‘vida’ está associada à discriminação.
Nas orientações das igrejas e em sites das organizações que militam contra a descriminalização do aborto, o discurso a favor da ‘vida’ e da ‘família’ é acompanhado da discriminação contra amplos segmentos da população. A condenação da homossexualidade é o principal exemplo. Parece que defender a ‘vida’ convive bem com preconceitos que são a base para o ódio que leva ao assassinato de centenas de homossexuais todos os anos no Brasil. A dor e o constrangimento daqueles que vivem sob ameaça ou são discriminados cotidianamente parece valer tão pouco quanto a vida das mulheres que se submetem a abortos clandestinos.
Um ambiente seguro e afetivo para as crianças depende de mudanças na organização da família. Há pelo menos duas condições para um ambiente familiar seguro e afetivo. A primeira é que o Estado deve sustentar políticas reprodutivas que garantam o direito ao planejamento familiar, contribuindo para condições materiais e psicológicas adequadas —com filhos desejados e pais que de fato desejem desempenhar esse papel. A segunda é que o ambiente familiar seja justo. A igual participação de pai e mãe na criação dos filhos, condições simétricas para a realização de um e outra dentro e fora do ambiente familiar e a eliminação da violência doméstica são necessárias para o desenvolvimento de crianças que tenham senso de justiça, respeito pelos outros e capacidade de convívio tolerante com a diferença.
Para tanto, a garantia de creches e o suporte para políticas de eliminação da violência doméstica e de igualdade entre homens e mulheres precisam estar na agenda.”