(Revista Samuel) As forças conservadoras que saíram às ruas de Paris contra o casamento igualitário em maio do ano passado voltaram a se manifestar no último domingo, dessa vez contra a ampliação do direito ao aborto no país. Na França, a interrupção voluntária da gravidez (IVG) pode ser realizada sem nenhuma restrição até a 12a semana de gestação, e no momento discutem-se duas emendas à lei que regulamenta o aborto: a primeira modificaria o texto da lei que estipula que pode realizar o procedimento a mulher que se encontra em “situação de desamparo”.
O novo texto eliminaria oficialmente a necessidade de justificativa, estabelecendo que qualquer “mulher grávida que não deseje seguir adiante com sua gravidez” tem o direito de interrompê-la. A segunda emenda propõe a ampliar o delito de impedir o acesso ao aborto; além dos grupos que invadem clínicas onde se realizam as operações, a lei estabeleceria também punição a quem dificultar a obtenção de informação sobre o direito à IVG, medida voltada às associações antiaborto que difundem informações “enganosas ou orientadas”, segundo o governo francês.
Participaram também da manifestação em Paris deputados espanhois do PP, partido do presidente Mariano Rajoy, cujo governo aprovou em dezembro do ano passado o projeto de reforma da lei que regulamenta o aborto no país. Um enorme retrocesso para a sociedade espanhola, o projeto pretende restringir o acesso à IVG, modificando a lei instituída em 2010 pelo então governo Zapatero, que permitia o aborto até a 14ª semana de gravidez, em qualquer circunstância, e até a 22ª semana se o feto apresentasse deformações consideradas sérias.
A reforma pretende estabelecer que a gravidez só poderá ser voluntariamente interrompida em caso de “grave perigo para a saúde física ou psíquica da mulher” até a 22ª semana, ou em caso de estupro até a 12ª, e prevê um processo kafkiano para que a mulher consiga autorização para realizar o procedimento. Grupos de feministas e mulheres de todas a Espanha preparam um protesto para o dia 01 de fevereiro em Madrid, em frente ao Palácio de Justiça, para entregar ao ministro Alberto Ruiz-Gallardón um manifesto exigindo a retirada do anteprojeto e a manutenção da lei atual.
O avanço conservador na Espanha ecoa a situação na Itália, onde vivi ano passado e acompanhei o debate sobre a restrição ao direito à interrupção voluntária da gravidez, previsto na lei 194 de 1978. Em um país sufocado pela influência do Vaticano, o embate entre o direito de autodeterminação das mulheres e o peso da Igreja Católica fica claro na lei, que prevê o direito ao aborto até os 90 dias de gestação e também a “objeção de consciência” por parte do pessoal médico, que pode se recusar a realizar a operação. Em alguns hospitais do país, o percentual de objeção de consciência chega a 100%, impedindo inclusive o acesso ao aborto às mulheres em risco de morte. As mulheres italianas e as estrangeiras que vivem na Itália se encontram hoje em uma situação absurda: têm o direito a interromper a gravidez mas não encontram pessoal médico disposto a fazê-lo, já que a mesma lei que lhes assegura esse direito dá margem para que elas sejam impedidas de exercê-lo. As aguerridas e queridíssimas feministas do coletivo Mujeres Libres Bologna elaboraram um guia em italiano para orientar mulheres que desejam abortar a superar as travas impostas pelos objetores de consciência e realizar a operação na cidade. Grazie, carissime!
Se na Europa há retrocessos, o grande Pepe Mujica representa no avanço da legislação sobre o aborto na América Latina. No Uruguai, a lei que descriminalizou e regulamentou o acesso à interrupção da gravidez nas redes pública e privada de saúde foi aprovada em dezembro de 2012. A solicitação da IVG pode ser feita até a 12a semana de gestação, ou 14a em caso de estupro (não há restrições nos caso de má-formação do feto ou risco de morte para a mulher). No primeiro ano em vigor da lei, o governo do país estima que tenham sido realizados cinco mil abortos, e de acordo com os dados disponíveis, nos primeiros seis meses não foi registrada nenhuma morte de mulheres por abortos inseguros.
O processo uruguaio prevê uma série de etapas – a mulher deve passar por uma comissão formada por um ginecologista, um psicólogo e um assistente social, e após o atendimento tem cinco dias para refletir sobre a decisão – e permite a realização do aborto somente a mulheres uruguaias, mas ainda assim é um grande avanço na região. Como mostra o mapa interativo lançado ano passado pelo Center for Reproductive Rights, uma organização não-governamental com sede nos EUA que opera em vários países, na América Latina somente Cuba, Porto Rico, Guiana e Guiana Francesa não criminalizam a prática do aborto.
Nalu Faria, psicóloga e líder da Marcha Mundial das Mulheres, vai falar sobre a legalização do aborto ao redor do mundo na próxima série das Aulas Públicas do Opera Mundi, no dia 28 de janeiro, terça-feira, às 9h, no campus da Unesp de Bauru. Acompanhar a discussão internacional sobre o acesso ao aborto é imprescindível para orientar a luta por esse direito aqui no Brasil, onde a criminalização não impede a realização da prática e uma brasileira (pobre) morre a cada dois dias em consequência de aborto inseguro.
Acesse o PDF: Acesso ao aborto no mundo: retrocessos na autodeterminação das mulheres (Revista Samuel – 21/01/2014)