(Renata Mariz, do Correio Braziliense) Pesquisa aponta que, antes de decidirem interromper a gestação, mais de 63% das brasileiras foram atendidas por profissionais de saúde e fizeram exames até comprovar a suspeita. Para especialistas, é nesse momento que o Estado deveria agir a fim de reduzir danos e mortes
Parte do problema está revelado. Dados oficiais apontam 220 mil curetagens feitas por ano na rede pública em função de abortos, ao custo de aproximadamente R$ 35 milhões. O índice revela ainda que, aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já interrompeu ao menos uma gravidez na vida, metade delas com complicações. O percurso traçado desde o atraso menstrual, entretanto, ainda era um capítulo obscuro nesse tema tão polêmico para a sociedade. Estudo inédito, financiado pelo Ministério da Saúde e obtido pelo Correio, jogou luz sobre a questão, mostrando que mais de 63% das mulheres utilizaram exames de sangue e ultrassom para ter certeza da gestação. Isso indica que se submeteram a profissionais de saúde anunciando a suspeita da concepção não planejada. Esse contato, momento em que seria possível adotar uma política de redução de danos, não as impediu de optarem por formas inseguras para dar cabo da gravidez.
Sob o título Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras, o estudo, feito a partir de entrevistas com 122 brasileiras, traz o dado revelador exatamente no momento em que o governo federal, sob pressão social e política, desistiu da ideia de discutir um serviço de aconselhamento na rede pública a quem não deseja ter um filho. “Verificar que a maior parte delas, antes de abortar, apresentou-se a um profissional de saúde é importante porque desmistifica a ideia de que confirma a gravidez por sinais corporais e mostra onde está a porta de entrada para a redução de danos. É nessa hora que a rede de saúde pode informá-las sobre todos os cuidados e os riscos no caso de um aborto provocado”, defende a antropóloga Debora Diniz, uma das autoras do estudo.
Do universo pesquisado, 71% das mulheres eram negras e 42% fizeram o primeiro procedimento antes dos 19 anos. Dessas, 54% já tinham filhos. Clínicas clandestinas e introdução de sondas no útero foram os métodos utilizados por 43% delas. Pouco mais da metade usou o misoprostol (princípio ativo do Cytotec) associado a chás e ervas. Quase 40% do total necessitou de internação devido a complicações. A presença de um marido ou namorado é proporcional à idade. No caso das mulheres mais jovens, só 39% contavam com um parceiro, enquanto entre as maiores de 21 anos, os homens estiveram presentes em 60% dos casos.
“Não há dúvidas de que o abortamento inseguro atinge a população menos favorecida. É da mulher pobre, negra e sem informação e acesso a políticas de reprodução que estamos falando”, diz Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Integrante de um núcleo independente que colabora com o Ministério da Saúde na elaboração de políticas para as mulheres, ele defende a implantação da redução de danos nos moldes do que é feito no Uruguai. “O projeto de lá não tem nada de criticável. Discute até a possibilidade de manter a gravidez com fins de adoção. Entre 2004 e 2010, eles reduziram as mortes maternas por aborto ilegal a zero. Mas, aqui, há uma questão moral, além dos interesses políticos, à frente da vida das mulheres”, critica.
Barreira
A falta de uma política específica — com o aconselhamento sobre riscos e cuidados do aborto ilegal —, aliada à clandestinidade do ato, considerado crime pela legislação brasileira, contribui decisivamente para a mortalidade da mãe, na avaliação de Leila Adesse, diretora da Ações Afirmativas em Direitos e Saúde. “A lei é uma barreira para o pleno exercício do direito à saúde da mulher, agravada por um desnível de acesso indiscutível”, destaca a dirigente da organização internacional. Hoje, o Brasil tem uma taxa média de 65 mortes por 100 mil habitantes, longe de 35, meta estipulada pela Organização das Nações Unidas para 2015.
O estudo mostrou ainda diferentes práticas na negociação moral das mulheres entre a suspeita da gravidez e a concretização do aborto. A utilização de chás, líquidos e ervas para a regulação menstrual foi usada por uma em cada três entrevistadas. Havia de tudo entre as fórmulas relatadas: de buchinha-do-norte a Coca-Cola quente com sonrisal, pimenta-do-reino e cidreira. Sem sucesso, elas saem de casa e procuram auxílio médico ou farmacêutico para confirmar a suspeita. Usam desde o teste de urina ofertado na drogaria até um exame mais sofisticado, como o ultrassom.
A constatação de que um quarto delas utilizou a ecografia foi uma surpresa para a equipe de pesquisa, não apenas por indicar, de forma inequívoca, que essas brasileiras dividiram a suspeita da gravidez com terceiros. Mas também por ser um exame por imagem. “Ou seja, o embrião ou feto é visualizado. Alguns estudos etnográficos mostraram que isso pode ser perturbador no processo de tomada de decisão pelo aborto, ao ponto de algumas legislações estaduais nos Estados Unidos quererem obrigar a realização do exame do ultrassom”, explica Debora. Apesar do achado, segundo ela, não é possível precisar o impacto dessa experiência. “O que sabemos, por enquanto, é que esse exame faz parte do processo decisório de uma parte significativa das mulheres.”
Amostra
O estudo foi realizado com mulheres de Brasília, de Salvador, do Rio de Janeiro, de Belém e de Porto Alegre. Como a amostra não foi aleatória (o que permite reproduzir os resultados para a população em geral), o grupo estabeleceu seis cotas educacionais e etárias destinadas a controlar elementos fundamentais de composição social e demográfica das mulheres que abortaram no Brasil.
Recorrência preocupante
Uma em cada quatro entrevistadas pela pesquisa Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras interrompeu duas gestações. Em cada 17, o índice chega a três ou mais procedimentos. Os dados, porém, não devem ser amplificados com total segurança para a população em geral, uma vez que pode ser um viés da amostra analisada. “Como são mulheres que se dispuseram a falar, podemos imaginar que sejam bem resolvidas com a questão e que, por isso, tenham feito mais de um ao longo da vida”, explica Debora. Mas uma informação é inquietante. Das sete entrevistadas que realizaram três abortos ou mais, seis se declararam prostitutas.
Acesse em pdf: O ponto crítico do aborto (Correio Braziliense – 22/06/2012)