(Última Instância) Em artigo publicado no site juridico Última Instância, o jurista e cientista criminal Luiz Flávio Gomes e a pesquisadora Elisabeta Neta tratam do delicado tema da interrupção terapêutica do parto em caso de feto anencéfalo, caso em que, segundo os especialistas, é “preciso conciliar a religião de cada um com a regra jurídica geral”. Para os autores, o Supremo Tribunal Federal, em vias a decidir sobre o assunto, “certamente apoiará o aborto anencefálico, condicionando-o, entretanto, à imprescindibilidade de que se trata efetivamente de um feto anencefálico, com perspectiva vital inviabilizada,ou seja: deve ser exigida a constatação médica fidedigna de duas coisas: feto anencefálico e inviabilidade da vida”. Leia a seguir trechos selecionados desse artigo:
“O contexto social em que foi formulado o nosso Código Penal já não é mais o mesmo. A sociedade não preserva os mesmos valores e a medicina não tinha alcançado tamanho conhecimento, capaz de diagnosticar, ainda na gestação, a anencefalia. A oportunidade de reformar o nosso CP não deve dispensar qualquer medida capaz de torná-lo atual. Para tanto, o aborto de anencéfalo deve ser taxativamente previsto como causa de aborto necessário [ou tolerável]”.
“Se o direito à vida é princípio fundamental, o direito à saúde e à liberdade de autodeterminação da gestante também o são. Além do mais, não há porque se falar em violação de um direito à vida, haja vista ser o feto incapaz de sobreviver fora do útero materno. É preciso preservar a saúde psicológica de uma mulher que se vê obrigada a prosseguir com um gravidez fadada ao insucesso. Trata-se de verdadeira tortura. Cabe a essa mulher escolher se deseja dar prosseguimento à sua gestação ou interrompê-la. “Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: III- se o fruto da gravidez tratar-se de feto anencéfalo.”
“A ciência médica afirma que em se tratando de um verdadeiro caso de anencefalia a vida do feto resulta totalmente inviabilizada. Não há que se falar em delito, portanto, no caso de aborto anencefálico. Não se trata de uma morte arbitrária (ou seja: não se trata de um resultado jurídico desarrazoado ou intolerável). Daí a conclusão de que esse fato é materialmente atípico.”
“Não se pode conceber um aborto sem a verificação certa e indiscutível da inviabilidade vital do feto. Sublinhe-se que, na atualidade, o diagnóstico é 100% seguro, consoante opinião de H. Petterson (da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal – Folha de S. Paulo de 29.08.08, p. C5).
Sem certeza científica, claro que não se deve admitir o aborto. Mas havendo certeza científica, não há dúvida que convicções ou crenças religiosas, embora respeitáveis, não constituem razões suficientes para se negar a possibilidade desse incomum aborto.
O STF, em sua decisão sobre o assunto, certamente apoiará o aborto anencefálico, condicionando-o, entretanto, à imprescindibilidade de que se trata efetivamente de um feto anencefálico, com perspectiva vital inviabilizada,ou seja: deve ser exigida a constatação médica fidedigna de duas coisas: feto anencefálico e inviabilidade da vida.
Pois somente nessas circunstâncias justifica-se o abortamento, isto é, nessas circunstâncias a morte não é desarrazoada arbitrária. Não se pode, destarte, falar em violação ao art. 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.”
“Não se pode confundir Direito com religião. Direito é Direito, religião é religião (como bem sublinhou o Iluminismo). Ciência é ciência, crença é crença. Razão é razão, tradição é tradição. Delito é delito, pecado é pecado (Beccaria). A religião não pode contaminar o Direito, sobretudo quando razões louváveis amparam a preservação de direitos fundamentais.
As crenças não podem ditar regras superiores à ciência. Do Renascimento até o Iluminismo, de Erasmo a Rousseau, consolidou-se (entre os séculos XVII e XIX) a absoluta separação das instituições do Estado frente às tradições religiosas. O Estado tornou-se laico. A Justiça e o Direito, desse modo, também são seculares.
Como conciliar o direito com a religião nesse tema tão debatido? Preservando o direito de cada mulher de optar (de faz ou não o aborto).”
“De 2001 a 2006 foram protocolados 46 pedidos de aborto anencefálico no Brasil: 54% deferidos, contra 35% indeferidos (alguns casos ficaram prejudicados) (O Estado de S. Paulo de 01.09.08, p. A16). Essa divergência jurisprudencial, por si só, já impõe uma tomada de posição pelo STF, o único capaz de nos trazer, em relação ao tema, uma certa segurança jurídica.
O Brasil, de qualquer modo, será um dos últimos países que irá reconhecer a possibilidade de aborto anencefálico, que é autorizado nos países da América do Norte, Europa e parte da Ásia. Também na Argentina não há impedimento. A proibição perdura nos países muçulmanos, parte da África e em alguns países da América Latina, diz relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde).
O não reconhecimento do aborto anencefálico é um atraso civilizatório incomensurável, que se deve à sobreposição das tradições sobre a ciência, das crenças sobre a dignidade humana. Temos que recuperar as Luzes do século XVIII. A OMS reconhece a anencefalia (verdadeira) como doença incompatível com a vida. Conclusão: o aborto anencefálico não é uma eutanásia pré-natal arbitrária, não ofende o princípio da dignidade humana (do feto). Ofensa à dignidade (da gestante) existe quando ele não é permitido.
Não se pede ao STF que reconheça mais uma hipótese de aborto no Brasil (além das duas já previstas na lei: CP, art. 128). O que se deseja é que o STF admita que esse aborto não é antinormativo (não contraria nenhuma norma, materialmente falando). Ele não é, portanto, nem moralmente nem juridicamente contra o Direito.
Ao contrário, é por respeito à dignidade da gestante que ele deve ser admitido. O aborto anencefálico, quando se trata de uma verdadeira anencefalia, não conflita com as normas jurídicas dos arts. 124 e ss. do CP. Esse é o fundamento jurídico para sua exclusão do Direito penal (exclusão da tipicidade material).
Nunca, entretanto, esse aborto poderá ser imposto, porque ninguém é obrigado a abortar. Toda gestante tem liberdade para fazê-lo ou não (de acordo com suas convicções pessoais e religiosas). Mas a que delibera sua realização não pode jamais ficar sujeita a qualquer tipo de sanção (ou se reprovação). Obrigar mulheres “a sustentar a gestação de um feto anencefálico é prática institucionalizada de tortura, já que a criança, com vida simbólica e psicológica, não existirá” (Samantha Buglione, Folha de S. Paulo de 26.08.08, p. C7).”
“No filme “Vida Severina” (que recomendo) mostra-se, com clareza, o quanto um feto anencefálico inviável afeta a dignidade humana.
A questão ainda está pendente de decisão no Supremo, sendo que no último informativo a respeito da matéria (Informativo 385) noticiou-se o entendimento do Ministro Sepúlveda Pertence, que refutou o fundamento de que a ADPF 54 se reduziria a requerer a inclusão de uma terceira alínea no artigo 128 do CP, por considerar que a pretensão formulada é no sentido de se declarar, em homenagem aos princípios constitucionais aventados, não a exclusão de punibilidade, mas a atipicidade do fato.
Entendimento que se coaduna com o nosso, a questão se revela solucionada com a aplicação do conceito de o fato ser materialmente atípico. Por força da teoria constitucionalista do delito que adotamos torna-se possível (acreditamos) fundamentar dogmaticamente a exclusão da tipicidade (no caso do aborto anencefálico).”
Leia o artigo na íntegra: Direito, religião e a previsão do aborto anencéfalo, por Luiz Flávio Gomes e Elisabeta Neta (Última Instância – 22/11/2011)