(Folha de S.Paulo) Papa retira a ênfase dos dogmas e acena com uma diretriz de tolerância e de inclusão; falta o plano para coibir abusos de hierarcas
Na longa entrevista publicada quinta-feira pelo periódico da ordem dos jesuítas, alusiva ao primeiro semestre de seu reinado, o papa Francisco deu novos passos na definição das mudanças que pretende implantar.
Francisco vem chamando a atenção pelo despojamento pessoal que adotou, como se instasse a Igreja Católica a se desfazer do que lhe resta da antiga opulência.
Mais importante, talvez, seja a disposição, agora explícita, de amenizar a ênfase em dogmas restritivos na esfera da sexualidade.
Na declaração mais notória, disse que a igreja não deve ser “obcecada” com a condenação do aborto, da contracepção e do casamento gay –o que representa discreta ruptura com a orientação dos antecessores João Paulo 2º e Bento 16.
Personalidade enérgica e midiática, o papa polonês revitalizou a igreja. Emerso da resistência ao comunismo, desbaratou a Teologia da Libertação, vertente católica de esquerda, e alavancou movimentos conservadores como a Opus Dei e a Renovação Carismática.
Tal impulso de restauração se exacerbou sob Bento 16, que fazia questão de ressaltar a desarmonia de costumes entre a tradição e o mundo contemporâneo, sugerindo uma igreja de menos e melhores fiéis.
Em termos profanos, era o equivalente a desistir de disputar o mercado das crenças. Em termos religiosos, equivalia a abrir mão da pretensão universal –católica, como diz o nome– da igreja.
Francisco não parece inclinado a revogar doutrinas. A Igreja Católica procura cultivar dogmas perenes, mas sua interpretação reflete o espírito de cada século, sendo a flexibilidade o segredo mesmo de sua subsistência milenar.
O papa argentino prefere abordá-los de forma tolerante. Sua tônica recai sobre o combate à pobreza, agora já expurgada do alarido revolucionário da Teologia da Libertação e genérica o bastante para não despertar controvérsia.
Nas simpáticas referências à própria condição de pecador, ele restitui à igreja uma complacência que também pertence à tradição, como se bastasse um vago desejo de se arrepender para estar habilitado ao rebanho.
Assim, como estratégia externa, a política de Francisco ganha corpo –mais interessada em somar que em dividir, mais voltada a um cristianismo prosaico do que doutrinário.
Menos visível é seu combate ao outro problema da igreja, a indisciplina corporativa que propiciou uma enxurrada de escândalos financeiros e sexuais. Espera-se que seu plano de reforma interna, a ser anunciado no mês que vem, esclareça esse ponto crucial.
Acesse o PDF: A doutrina Francisco (Folha de S.Paulo, 23/09/2013)