Médicos citam avanços, mas ainda há desinformação sobre o tema; religiosos criticam duramente a medida.
(G1) Passado um ano desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o aborto em casos de gravidez de fetos anencéfalos (sem cérebro), pacientes brasileiras estão tendo acesso mais fácil ao procedimento, mas ainda há importantes deficiências a serem resolvidas, dizem médicos consultados pela BBC Brasil.
A decisão do STF – tomada em abril de 2012 e detalhada no mês seguinte em resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) – tem forte oposição de grupos religiosos, que a veem como um retrocesso das garantias do direito à vida.
Antes, mulheres grávidas de fetos sem cérebro tinham de pedir autorização à Justiça para interromper a gestação, algo que podia ou não ser concedido pelo juiz.
“Em São Paulo, isso poderia levar de uma semana a dois ou três meses”, afirma o ginecologista Cristião Rosas, da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Atualmente, esse período foi reduzido para dias, caso a mulher decida pelo procedimento.
“Mas a rapidez não vem em primeiro lugar”, complementa o ginecologista Thomaz Gollop, coordenador de um grupo de estudos sobre o aborto. “A paciente deve receber orientação psicológica e ter tempo de amadurecer (sua decisão).”
Informações
A gravidez de anencéfalos é considerada de alto risco porque o feto fica em posição anormal e há o perigo de acúmulo de líquido no útero, descolamento da placenta e hemorragia. E não há perspectivas de longa sobrevivência para o feto, que em muitos casos morre durante a gestação.
Os médicos aguardam a publicação de uma norma técnica do Ministério da Saúde, com diretrizes claras sobre como os profissionais devem lidar com o tema. A norma está em fase final, mas não há data para sua publicação.
Enquanto isso, especialistas dizem que há desinformação, tanto entre pacientes quanto entre as próprias equipes de saúde; que os serviços que fazem aborto (entre 50 e 60) são insuficientes; e que muitos profissionais alegam razões de foro íntimo para não informar as gestantes de seu direito ou mesmo para negar o procedimento.
“Ainda há (entre alguns médicos) a falsa ideia de que a interrupção é mais arriscada do que deixar a gravidez evoluir. E é ao contrário”, explica Cristião Rosas. “Daí o médico posterga tanto que, quando a mulher chega ao hospital (para interromper a gestação), já está em situação de risco.”
‘Chorei tanto’
A dona de casa pernambucana Elisa (nome fictício), de 23 anos, descobriu estar grávida de um bebê anencéfalo no mês passado, no quinto mês de gestação.
“Era uma menina, uma filha que eu desejei muito”, diz Elisa. “Chorei tanto. Fiz de novo o ultrassom, e o médico falou que eu poderia interromper a gravidez. Decidi interromper.”
Mas o hospital procurado por Elisa, a 680 km de Recife, é dirigido por religiosos católicos, que negaram o procedimento. Ela então recorreu a uma prima, enfermeira em um hospital em Recife, onde a jovem fez a antecipação terapêutica do parto.
O Ministério da Saúde afirma que, diante da decisão do STF e sendo o Brasil um Estado laico, hospitais que se negarem a realizar procedimentos legais podem ser acionados na Justiça.
Já a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) defende o direito de médicos e entidades exercerem objeções de consciência.
Disparidades
Polêmicas à parte, para Thomaz Gollop, o direito ao aborto no caso de anencefalia está consolidado “por 21 anos de (emissão de) alvarás judiciários (autorizando a prática), algo sacramentado pela decisão do Supremo”. Mas a ausência de uma norma técnica abre espaço para disparidades.
“O procedimento é rápido nos Estados onde existe o serviço legal (de aborto)”, diz. “Não acredito que as mulheres estejam desassistidas. Mas não temos nenhuma mensuração.”
Não há dados oficiais sobre os abortos legais de anencéfalos no Brasil nem sobre o impacto da decisão do STF.
Mas o médico Jefferson Drezzet, do hospital Pérola Byington – referência em saúde da mulher em São Paulo –, diz que a decisão do STF não fez aumentar o número de procedimentos.
“A anencefalia é uma doença cuja incidência obedece a uma constante. É diferente do aborto de gestações indesejadas. Portanto, não houve aumento de casos”, diz.
“O que mudou é que as mulheres diagnosticadas não precisam passar pela torturante tarefa de ir a uma vara criminal por um pedido que podia ou não ser concedido.”
Luto
A isso – e independentemente se a mulher decida fazer ou não o aborto – se soma um dolorido processo de luto, explica Drezzet.
“A mulher sente culpa, derrota. É uma situação emocionalmente difícil.”
Elisa diz à BBC Brasil que ainda tem crises de choro quando pensa na filha que não teve.
“Todas as vezes que mexo nas coisinhas que comprei para ela, eu lembro e choro.”
Dados globais indicam que a incidência de anencefalia é de em média 1 em cada 10 mil gestações, mas – por razões não totalmente compreendidas – o Brasil é um dos países com o maior número de casos. A prevenção é feita com a ingestão de ácido fólico antes da gestação, o que reduz consideravelmente os riscos, diz Drezzet.
Os médicos consultados afirmam que, em meio à perda, é importante que a mulher não se sinta culpada ou criminosa.
“Ela tem que saber que tem liberdade para decidir”, diz Gollop.
Para Débora Diniz, pesquisadora da Anis (grupo de bioética que propôs a ação no STF), a decisão acabou com a instabilidade jurídica antes enfrentada pelas mulheres. Mas o tema está longe de consensos.
Garcia relata histórias de mulheres que optaram por dar continuidade à gravidez de anencéfalos, os fetos sobreviveram mais que o esperado e, até sua morte, “existiu uma interação de muito amor” entre mãe e filho.
Acesse em pdf: Um ano após decisão do STF, aborto de anencéfalos esbarra em entraves (G1 – 27/05/2013)
Leia mais: ‘É muito difícil saber que o filho na sua barriga vai morrer’ (BBC – 27/05/2013)