(Débora Diniz, especial para O Estado de S. Paulo) Como uma plantadora de brócolis analfabeta enfrentou o STF e conseguiu o direito (tardio) de abortar um anencéfalo
A história de Severina foi cantada por uma repentista e desenhada por um xilogravurista. Mocinha de Passira e J. Borges deram vozes e cores nativas ao filme que leva o nome da protagonista, Uma História Severina. O documentário conta a peregrinação de Severina, uma agricultora pobre e analfabeta de Chã Grande, cidade do brejo pernambucano. Por uma triste coincidência, ela estava internada em um hospital público de Recife na mesma tarde em que o Supremo Tribunal Federal cancelou a liminar de anencefalia em 2004. Grávida de 14 semanas de um feto sem cérebro, teve que voltar para o sítio em que vivia para iniciar uma longa jornada por tribunais e hospitais. Foram três meses de idas e vindas para o novo alvará autorizando o aborto, resumidos nas palavras de seu marido Rosivaldo pela memória do arquivo: “Foi preciso uma pasta bem grande para guardar todos os papéis que recebemos”.
Em janeiro de 2005, Severina deu à luz um feto natimorto. Em resguardo pelas dores do parto, ela só conheceu a cova de seu filho anônimo pelas imagens do documentário. “Eu nem sei onde é a covinha dele”, disse ao assistir ao enterro pela primeira vez, em um misto de superação e melancolia. A gravidez de Severina foi desejada. Mãe de Walmir, hoje com 12 anos, queria crescer a família. Walmir sonhava com um irmão e Rosivaldo com uma filha. Católica, antes de decidir pela antecipação do parto buscou conforto no padre de sua paróquia. O padre ouviu sua dor e não foi capaz de demovê-la da escolha. Ela e Rosilvado exibiam a ecografia do “feto sem cérebro” para quem quisesse se convencer do caráter irreversível do diagnóstico. A imagem era o argumento mais forte que possuíam para uma dor invisível à lei penal.
Severina descobriu que o Brasil possui uma Suprema Corte há oito anos. Antes mesmo de ser apresentada aos ministros do STF pelo documentário, foi no hospital que ouviu falar deles pela primeira vez. Uma das xilogravuras de J. Borges registrou esse instante: o enquadramento é o Jornal Nacional, as imagens são os ministros do STF, a audiência é a solitária Severina. A abstração dos argumentos dos juízes não falavam da dor de Severina, tampouco da realidade de seu corpo que gestava um feto que não sobreviveria ao parto. Menos ainda do mundo concreto de uma mulher que voltaria à plantação de brócolis no dia seguinte. O médico que cuidava de suas aflições assumiu o lugar de tradutor das leis. Sem a liminar, o médico explicou a Severina que restavam duas opções: esperar os nove meses de gestação ou tentar um alvará na comarca de Chã Grande. Severina ignorou o verso cantado por Mocinha de Passira sobre sua história, “os homens de toga e de batina não autorizaram parar o movimento”, e iniciou a jornada pelos papéis e burocracias. Rosivaldo mantém a pasta arquivo intocável como memória dos meses de espera.
Em 2004, Severina estava em uma sala de espera de um hospital público para ser atendida. Para ela, o médico era a autoridade máxima. Foi ali que descobriu que, sem o juiz, o médico não poderia socorrê-la. Mas como convencer o juiz de Chã Grande se o ministro da Suprema Corte dizia que a dor dignificaria uma mulher? Severina não sabe o que fez o juiz local ouvi-la, mas, com o alvará em mãos, retornou ao hospital para ser atendida. No caminho, comprou a única peça do enxoval, a roupa que acompanhou o caixão branco. Sentiu as dores do parto para em seguida secar o leite do filho natimorto. Nesses quase oito anos, sua dor se esvaiu no sol quente da plantação de brócolis. Não há rancor nem heroísmo em sua voz. Severina e Rosilvado não tiveram mais filhos. Lembram do passado como uma história.
Severina decidiu fazer uma grande viagem. Sairá pela primeira vez das fronteiras de Pernambuco, Estado que resume a geografia de sua existência. Fará sua primeira viagem de avião, acompanhada de Rosivaldo e Walmir. Neste dia 11, Severina estará na primeira fileira de um dos julgamentos mais longos da história do STF. Ela quer ouvir, ver e sentir a abstração do poder. Quer se exibir como uma história encarnada de uma dor – ela é a mulher que viveu a sentença da Suprema Corte há oito anos. Hoje, representa outras severinas ainda por vir. Severina não é uma tese jurídica: é uma mulher concreta, cuja dignidade não é medida pela maternidade compulsória, mas pelo reconhecimento do caráter sublime do direito de escolha. Severina não falará aos ministros, mas sua presença descreverá uma existência que a abstração da lei acredita poder ignorar.
DEBORA DINIZ é professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Acesse em pdf: Uma história Severina, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo – 08/04/2012)
Uma história Severina